Por Patrícia Bonilha, de Brasília, Cimi
A criminalização dos povos e das lideranças indígenas e, assim, a deslegitimação da luta pelas suas terras tradicionais se radicaliza e inscreve uma nova página na história já bastante violenta do Brasil em relação aos seus habitantes originais. Mesmo sem provas materiais sólidas e indícios relevantes de que tenham cometido o assassinato de dois agricultores, cinco indígenas Kaingang da Aldeia Votouro/Kandóia estão presos desde o último dia 9 de maio no Presídio Estadual de Jacuí (RS). Chama atenção, no entanto, o fato de que, de acordo com os cinco indígenas e os outros membros da comunidade, nenhum deles tenha participado do bloqueio da estrada vicinal, que fica dentro da área reivindicada pelos indígenas, no município de Faxinalzinho, onde o conflito com agricultores ocorreu no dia 28 de abril. Apesar das inúmeras e óbvias falhas no inquérito, os indígenas continuam presos, evidenciando que o que está em jogo, de fato, é a criminalização do direito dos indígenas de lutarem pela terra.
Este caso se insere em um contexto de outros episódios ocorridos nos quatro cantos do país. Por vinte anos, nas décadas de 1990 e de 2000, o povo Xukuru, em Pernambuco, sentiu na pele a dor de ser acusado de vários crimes que não cometeu. Em novembro de 2012, uma catastrófica operação da Polícia Federal, com a desculpa de dizimar o garimpo ilegal na região, resultou na morte de Adenilson Munduruku, além da destruição de toda a aldeia. Os indígenas já tinham se manifestado contrários à construção das hidrelétricas no Rio Tapajós, que inundariam suas aldeias. Outra operação desastrosa da Polícia Federal aconteceu em Sidrolândia, no Mato Grosso do Sul, durante a reintegração de posse da fazenda Buriti, em que o indígena Oziel Terena foi morto. A recente prisão do cacique Babau, realizada em abril deste ano, na véspera de sua viagem a Roma, onde ele iria denunciar ao papa as violações a que seu povo está submetido há décadas foi o último episódio de criminalização vivido pelos Tupinambá, na Bahia. Mesmo sendo um dos primeiros povos a ter contato com os colonizadores, eles vêm há cinco séculos enfrentando as duras consequências de não desistir da luta pela demarcação da sua terra. Todos estes casos têm em comum o fato de que os povos acusados de terem cometido algum crime estavam na luta pela demarcação ou defesa da sua terra tradicional.
Cabe ressaltar aqui que os cinco kaingang presos em Faxinalzinho ocupam posições importantes em suas comunidades. Deoclides de Paula é cacique, Nelson Reco de Oliveira é vice-cacique, Celinho de Oliveira é filho do kujã, líder religioso da comunidade, Daniel Rodrigues Fortes é agente de saúde e Romildo de Paula é uma das lideranças do povo, além de ser primo do cacique. Desse modo, é claro que, ao prender estes indígenas, desestrutura-se a organização social da comunidade.
O inquérito está repleto de irregularidades e, ao invés de focar em questões básicas, como de quem eram as armas utilizadas e os motivos que levaram ao conflito, parte da premissa inicial de que “os índios se reúnem em bando ou quadrilha para cometer crime” e que formam uma organização criminosa, onde os dissidentes saem das reservas demarcadas para disputarem terras com pequenos agricultores, que seriam usadas para futuros arrendamentos.
Abusos e falta de provas
Apesar do prazo para a prisão em flagrante já ter se esgotado e sem ter nenhuma prova cabal de que aquelas eram as pessoas que haviam praticado os delitos, já que não há nenhuma testemunha que tenha presenciado as mortes ocorridas, a polícia federal invadiu uma reunião promovida por integrantes da prefeitura de Faxinalzinho, do governo do Rio Grande do Sul e do governo federal para dialogar sobre os conflitos entre indígenas e agricultores e o processo de demarcação da terra já reconhecida pelo órgão federal como tradicionalmente indígena.
De acordo com o relato feito pelos indígenas aos seus advogados de defesa, as prisões foram realizadas de forma truculenta e irregular, sendo que os mandados de prisão temporária não foram apresentados no ato de detenção de sete indígenas Kaingang, que puderam tomar conhecimento do documento apenas horas mais tarde, em Passo Fundo. Chegou-se ao ponto de dois indígenas terem sido liberados, neste município, em função de absoluta falta de elementos que justificassem suas prisões.
Um dos aspectos que chama bastante atenção é o de que, além dos depoimentos dos próprios indígenas presos, a comunidade de Kandoya, desde a prisão, afirma categoricamente que nenhum dos cinco Kaingang participou do bloqueio da estrada onde os agricultores morreram. Em pronunciamento, eles garantem que o cacique Deoclides estava em sua casa, com a família e outros membros da comunidade. Ele, inclusive, foi quem, informado do clima de tensão na área, chamou a Polícia Militar antes mesmo das morres ocorrerem. Celinho de Oliveira estava com seu pai, mãe e esposa no município de Nonoai, a cerca de 25 km do local onde o conflito ocorreu. Ele dirigiu o veículo utilizado pela família que fez compras em vários estabelecimentos comerciais neste município. Nelson de Oliveira também estava em sua casa, com a família, no momento do conflito. Cumprindo suas obrigações de agente de saúde, Daniel Rodrigues Fortes estava fazendo visita domiciliar na própria comunidade. E, por último, Romildo de Paula não esteve no bloqueio onde ocorreu o conflito. Ele participava de outro bloqueio, dos três realizados simultaneamente naquele dia, que ficava a pelo menos 500 metros.
Talvez a explicação para estas prisões aleatórias esteja na espantosa admissão do próprio delegado da polícia federal, Mário Vieira, feita aos juízes de primeira instância, de que pode haver falhas na representação contra os cinco Kaingang, ao reconhecer que “a identificação de índios é muito difícil”, porque “são parecidos”.
Além de demonstrar completo desconhecimento sobre a legislação indigenista e do modo de ser indígena, o delegado Vieira tem apresentado uma conduta inadequada e parcial. Ele dificultou o acesso e o acompanhamento dos advogados dos Kaingang ao inquérito policial e a outros procedimentos durante a investigação, como as oitivas dos indígenas realizadas no dia 14 de maio na Superintendência Regional da Polícia Federal do Rio Grande do Sul (SR/DPF/RS). Neste caso, os advogados deveriam ter sido comunicados com antecedência, mas o delegado informou que as oitivas não seriam realizadas no dia proposto. Uma manobra que, se não tivesse sido revertida, resultaria em prejuízo para os indígenas detidos. O fato foi denunciado ao delegado da Polícia Federal, Cesar Leandro Hubner, de plantão na SR/DPF/RS, naquele mesmo dia. Além disso, o delegado também se manifestou de forma inapropriada na imprensa, outorgando a si o poder de julgar quando afirmou publicamente, de modo preconceituoso e sem quaisquer evidências sólidas baseadas em uma cuidadosa investigação, a culpa dos Kaingang pela prática de crime hediondo, informando que estes ficarão presos por um período de 30 a 50 anos. Devido a estes fatos, Vieira e membros de sua equipe são objetos de denúncia encaminhada ao Ministério Público Federal (MPF).
O que é relevante está fora do foco
Não há, de fato, indícios de autoria e materialidade relacionados aos cinco kaingang presos, já que nenhuma das testemunhas, até agora, afirma ter presenciado a morte dos agricultores; alguns depoimentos terem sido feitos por amigos das vítimas e apresentarem contradições evidentes; e os testemunhos dos policiais que, inclusive, apontaram nomes de indígenas que teriam cometido os crimes, serem bastante frágeis, já que eles não estavam no local do conflito no momento, chegando muito tempo depois do ocorrido. Também não há prova de que as armas utilizadas eram dos indígenas. Estes, ao contrário, afirmam categoricamente que não portavam armas de fogo. Fica a questão: como estas armas, de uso restrito, apareceram no conflito?
Cabe observar que inicialmente foi a Polícia Civil que instaurou o inquérito policial para a apuração dos fatos, sendo que a chefia de polícia determinou que a apuração fosse repassada para a Polícia Federal. Ou seja, a investigação foi realizada de forma indireta.
“A partir de tudo o que analisamos deste processo, consideramos que não há motivo para que seja mantida a prisão temporária dos cinco kaingang. Desse modo, será dada entrada em um pedido de habeas corpus para a soltura dos indígenas”, afirma Adelar Cupsinski, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Terra, a questão de fundo
A espera de 12 anos para obter o reconhecimento final da Terra Indígena Kandóia e o total descaso do governo federal no sentido de finalizar este processo é o pano de fundo do conflito ocorrido em Faxinalzinho. Muito antes deste processo recente, o governo do Rio Grande do Sul havia reconhecido esta terra indígena Kaingang, originalmente comandada pelo cacique
Votouro, a leste do Rio Passo Fundo, em 1918, com 31 mil hectares. Deste total, após inúmeras distribuições de terras em projetos de colonização e invasões de fazendeiros, o relatório de identificação e limitação da Terra Indígena Votouro/Kandóia, da Fundação Nacional do Índio (Funai), define que a área é de apenas 5.977 hectares. Destes, 3.100 hectares foram demarcados como Terra Indígena Votouro. Faltando demarcar, portanto, 2.877 hectares da Terra Indígena Kandóia.
Após a publicação no Diário Oficial da União em 7 de dezembro de 2009, o relatório foi encaminhado ao Ministério da Justiça, que tinha um prazo de 30 dias para dar um encaminhamento ao processo. No entanto, ele continua paralisado em alguma gaveta, à espera da assinatura da Portaria Declaratória pelo ministro José Eduardo Cardozo.
Ao invés de cumprir suas obrigações constitucionais e de modo a não frustrar os interesses do agronegócio na região, o governo federal insiste em negociar os direitos indígenas em mesas de diálogo, que não tem amparo no procedimento administrativo da demarcação de terras indígenas.
Promessas e nada mais
Após bastante pressão dos kaingang, e com a promessa de dar prosseguimento à demarcação, foi realizada uma reunião no dia 19 de março no Ministério da Justiça, em Brasília. Neste dia, foi agendada uma reunião para o dia 5 de abril ou 12 de abril. No entanto, o ministro Cardozo não apareceu nem nesta e nem nas outras três reuniões agendadas no mês de abril com o povo kaingang, em uma cruel manifestação de total desrespeito e descompromisso em resolver os problemas latentes.
Em nota pública, divulgada no dia 29 de abril, o Conselho Indigenista Missionário – Regional Sul, o Conselho de Missão entre os Povos Indígenas (Comin) e a Frente Nacional em Defesa dos Territórios Quilombolas/RS afirmam “Responsabilizamos o governo pelas violências em função de sua omissão e negligência, uma vez que as autoridades eram sabedoras da situação de conflito e nada fizeram, a não ser protelar suas decisões”.
Para as lideranças indígenas, a verdadeira raiz do conflito que vitimou os dois agricultores é justamente o fato de o ministro estar enrolando o povo e não concluir efetivamente a demarcação, o que causa insegurança e aumento da tensão na região. Segundo Valério de Oliveira, liderança do povo Kaingang da Aldeia Kandóia, “todos os caciques estão preocupados com a situação no Rio Grande do Sul, onde crianças estão sofrendo embaixo das lonas… mas o ministro não tem nem vergonha de não ter demarcado nem um dedo, nem um palmo de terra aqui. Até agora não aconteceu nada…”.
Também cabe lembrar que a violência em relação aos conflitos agrários tem sido estimulada por membros do parlamento brasileiro. Em discursos realizados em Vicente Dutra, a apenas 123 km de Faxinalzinho, em dezembro de 2013, os deputados federais Alceu Moreira (PMDB/RS) e Luis Carlos Heinze (PP/RS), durante audiência pública financiada com recursos públicos, incitam os agricultores contra as populações indígenas e quilombolas. O fato ganhou grande repercussão nacional e resultou em queixa crime, por parte de várias organizações da sociedade civil, que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF).
Beleza de matéria Patrícia! Parabéns!