Raquel Rolnik: “Crise enfrentada hoje pela USP não é somente por 0%”

Alunos da USP realizam ato em frente à reitoria em defesa do sistema de cotas. Setembro de 2013
Alunos da USP realizam ato em frente à reitoria em defesa do sistema de cotas. Setembro de 2013

Blog da Raquel Rolnik

Comentários sobre “mais uma crise na USP” têm povoado o noticiário desde que a nova reitoria, no comando da universidade desde o início do ano, anunciou a existência de graves problemas financeiros e, portanto, a impossibilidade de conceder reajuste aos professores e funcionários.

A impressão que fica é que a USP é uma instituição problemática, que gasta milhões de recursos públicos sem dar à sociedade um retorno à altura.

Além disso, a narrativa que vai ganhando hegemonia é a de que ela serve a estudantes de elite que deveriam pagar pelos cursos.

Completa o raciocínio a ideia de que, além de cobrar mensalidades, a USP deveria vender todos os seus ativos: realizar pesquisas para quem está disposto a financiá-las, alugar seus espaços e vender serviços… como se isso fosse solução para os problemas. Nada mais equivocado!

A crise que vivemos hoje na USP é a mesmíssima dos últimos anos, quando se passava a imagem de que nossas contas estavam muito equilibradas. Continuamos diante de um grave problema de gestão, que tem a ver com as arcaicas estruturas de poder da universidade.

Há muito tempo está claro que o modelo de gestão baseado na hierarquia acadêmica não fica mais de pé.

Nas últimas décadas, vimos diversas experiências de gestão pública democrática e participativa no Brasil, muitas formuladas dentro da própria USP, mas a universidade se manteve impermeável e, simplesmente, não se democratizou.

Só agora, depois de muita pressão da comunidade acadêmica, estamos iniciando um positivo processo de discussão sobre a necessária reforma de seu estatuto.

Para os que —como eu— acham um descalabro os mais pobres financiarem uma universidade que pouco os absorveu, o remédio proposto por alguns —cobrança de mensalidades— não enfrenta esse problema.

RECURSOS

Se a maior parte dos recursos da universidade vem do ICMS, que é um imposto regressivo, majoritariamente pago pelos mais pobres, este é um defeito não da universidade, mas do sistema tributário e do financiamento do setor público no Brasil.

São os mais pobres que pagam por todas as políticas públicas, inclusive as que transferem maciçamente recursos públicos para grandes conglomerados privados.

Reformemos, então, nosso sistema tributário!

Por fim, cabe uma reflexão: com todos os seus problemas, a USP devolve ou não à sociedade o que nela se investe? Não tenho dúvidas de que sim: isso está não só no papel que ela tem em formar recursos humanos para o próprio sistema geral de ensino do país, mas também na importância de sua pesquisa e extensão.

É justamente a independência da USP em relação ao mercado —não precisar vender serviços de educação e pesquisa “customizados” para quem pode pagar— o que viabiliza este importante papel.

Se a qualidade e eficiência do nosso setor público são um clamor da sociedade, a USP deve mostrar que isso é possível. Reconstruindo dentro de casa o sentido do que é “público”.

*Texto originalmente publicado nFolha de S. Paulo.

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