Mais ainda que artista, Chico é cidadão brasileiro. Um dos cidadãos mais estimados do país, e o documentário sobre sua vida prova isso.
Por Léa Maria Aarão Reis*, em Carta Maior
Entre as histórias, vinhetas, músicas, e deliciosas lembranças que ele proporciona, no filme documentário de cerca de duas horas sobre sua vida e trajetória, um presente maior e “soberano” de fim de ano aos cinéfilos e não cinéfilos, uma observação de Chico Buarque resume sua maneira de ser. “Se eu precisasse me identificar, eu falaria ‘eu sou Chico, da Mangueira’, ele diz, em uma das oito entrevistas registradas no filme do seu amigo, o cineasta Miguel Faria Jr., com o título de Chico– Artista brasileiro. Mais ainda que artista, Chico é cidadão brasileiro. Um dos cidadãos mais estimados do país, dentro e fora do bairro do Leblon, no Rio de Janeiro, onde foi abordado e insultado, na calçada, há dez dias, por meia dúzia de pilantras desocupados.
A bilheteria do filme que estreou um mês atrás e já vinha com um desempenho de sucesso embora concorrendo com um campeão de público, Guerra nas Estrelas, ganhou uma dimensão ampliada com a imediata, imensa e indignada repercussão nacional sobre o lamentável episódio em que Chico foi agredido por suas posições políticas.
Está sendo exibido em circuito nacional: Brasília, Rio, São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, Goiânia e Belo Horizonte. Ao final das sessões, que já vinham superlotadas, o documentário continua sendo aplaudido, e a sala se emociona. Como numa espécie de desagravo simbólico a um dos seus maiores ídolos da MPB; a um dos nossos escritores vivos mais interessantes, (em especial pelo seu livro O Irmão Alemão), mas, sobretudo ao cidadão exemplar que ele sempre foi e é.
Miguelzinho, (autor de mais dois outros lindos docs musicais; Vinícius e Lamartine Babo), como Faria Jr. é conhecido desde os anos 60, assíduo do mitológico restaurante Antonio’s, no Leblon, é amigo de longa data de Chico. Daqueles de andar no calçadão em sua companhia, em paz, sem que ninguém incomode ou perturbe o mito. “São cinco décadas de amizade; e agora, para o filme, 20 horas de gravações de entrevistas sem nada de recomendações particulares ou restrições por parte dele,” diz.
Sobre uma contradição sugerida por Chico, que se diz mais da ala literária, apesar de se ver de preferência como da “turma da música”, o diretor esclarece: “Acho que ele se refere a isso, de haver muita panelinha entre os autores. O pessoal da música é mais descontraído. Não tem aquela coisa, entre aspas, de ser escritor”.
Outro lance, no filme, revelador da sua elegância – no sentido total: educação, reserva, discrição e respeito pelos outros – características que faltam aos fascistas – é a história contada por um dos seus músicos. Chico gosta, antes dos shows, de sair do seu próprio camarim para bater um papo no espaço reservado aos músicos veteranos que o acompanham de longa data. “Quando bate na porta a gente já sabe. É ele. Só o Chico faria isso: bater na porta do camarim antes de entrar.”
Um entrevistador sempre invisível conduz a estrutura narrativa do doc intercalando falas do protagonista com preciosas imagens. Sequências de fotos de álbum de família – Maria Amélia, sua mãe, com o bebê Chico no colo, na Copacabana dos anos 40. Filmetes caseiros, trechos de shows históricos, arranjos emocionantes de autoria de Luiz Claudio Ramos. Interpretações antológicas: as de Ney Matogrosso e da portuguesa Carminho são de arrebatar; e tem Betânia ontem e hoje; Péricles, Laila Garin, Monica Salmaso, Calcanhoto, Mart’nália, e pequenas entrevistas/flashes com amigos de toda vida.
Chico e Bob Marley numa pelada, no Rio, jogando futebol. “Sabe”, conta Chico, rindo, “que num museu que reúne tudo sobre Marley perguntaram a ele quem era aquela figura ao seu lado, aqui”, e aponta uma foto dos dois, com a bola, emoldurada, na parede do seu estúdio, entre outras tantas. “O guia disse: bem, este é um cantor alemão…”
O saudoso Hugo Carvana lembra o olhar do amigo dirigido a Marieta Severo quando a viu pela primeira vez, andando, na porta do teatro. “Perguntou: ‘quem é?’ Não era o olhar do homem para uma mulher que achava gostosa; era o olhar de quem está querendo saber o motivo do atraso da moça; ‘mas onde ela estava que só apareceu agora?’ o seu olhar indagava.”
Há imagens dele com o grupo de escritores e intelectuais frequentadores da célebre cobertura de Rubem Braga, em Ipanema. Paulinho Mendes Campos, Tom, Sabino, Millor, Otto, o fotógrafo Paulo Garcez (são de Paulinho diversas fotos usadas no filme) e Chico, bem mais moço que todos, conversando com um Manuel Bandeira idoso, numa de suas raras e últimas aparições.
E há discrição nos assuntos da vida privada, do casamento e da família. Miúcha é entrevistada e três dos seus sete netos fazem música acompanhada por ele, no seu apartamento; antes da sessão, na cozinha, o avô serve bolachas guardadas dentro do pote. Comenta-se no filme a renovação do seu público.
O casal Chico e Marieta no exílio, em Roma, ele sendo entrevistado, responde em fluente italiano. O retorno ao país e a raiva pela censura sistemática às suas composições, e sua surpresa vendo a ditadura apoiada por grande maioria da sociedade civil. “Fiquei impressionado com a quantidade de carros com os adesivos de ‘Brasil ame-o ou deixe-o’.
Outro tema sobre o qual conversa, é o da memória e das lembranças. Também da “memória falsa”, irmã da “fantasia e da imaginação.” “Por exemplo, eu lembro que vi o Zepelin passando, do colo da minha avó; tenho certeza! É uma memória falsa. Naquela época não exista mais Zepelin voando para o Rio…”
Imagens para a passagem entre sequências, são da mata e da imensidão de um mar esparramado sob o janelão da sala de Chico, ao pé do emblemático Morro dos Dois Irmãos. Outras, dele em Berlim onde foi parar buscando rastros deixados pelo irmão, Sergio Günther, que realmente existiu, foi cantor e compositor. Chico cantarola A Banda numa versão alemã.
A impecável montagem de Diana Vasconcellos de todo este material e a bela fotografia de Lauro Escorel – todos são trabalhos das amizades de Chico. A colaboração do escritor Eric Nepomuceno e das amigas jornalistas Martha Alencar e Regina Zappa. Os figurinos de Marília Carneiro.
Poético, jornalístico e de uma delicadeza muito particular, este Chico – artista brasileiro onde o compositor fala de uma solidão que não sente: “Gosto de estar sozinho; trabalho, leio, escrevo, vejo futebol na TV.” Disfarça e desmente, para surpresa geral, a imagem de grande tímido: “Na família, quando eu era menino, me chamavam de showboy.”
O tempo que passa deixando pouco tempo para projetos. Shows, músicas novas, gravações, livros. Faz as contas de quanto tempo levará para fazer tudo isto, desiste e ri. Ele ri muito.
Chico pertence a uma espécie que, ao contrário do que se pensou, neste ano, não se encontra em extinção. A prova são as quase 40 mil pessoas que, pela internet, estão saudando o ano novo tomando uma cervejinha com Chico. Nós nos juntamos ao brinde. Que 2016 dê passagem para Chico Buarque de Holanda, cidadão brasileiro.
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*Jornalista.