Sobradinho de volta ao Sertão: Reservatório chega ao mais baixo nível em quase 40 anos

O São Francisco, lá pra cima da Bahia
Diz que dia menos dia vai subir bem devagar
E passo a passo vai cumprindo a profecia
Do beato que dizia que o sertão ia alagar

(Trecho da música Sobradinho, de Sá e Guarabyra)

Por Edwirges Nogueira, enviada especial da Agência Brasil

Casa Nova e Remanso, Bahia – Sob a luz forte do sol quente do semiárido, Sobradinho, o maior reservatório construído ao longo do Rio São Francisco, exibe toda a sua grandiosidade. De um lado da parede da barragem, o Velho Chico com suas curvas naturais. Do outro, a água retida pela obra do homem se espalha para além do que a vista pode alcançar.

Foi na década de 1970 que o sertão da Bahia virou mar. Casa Nova, Remanso, Pilão Arcado e Sento Sé foram engolidas pelo São Francisco e deram lugar a 34 bilhões de metros cúbicos de água. A barragem serve para regularizar a vazão do rio, ao mesmo tempo em que retém água para a agricultura, o abastecimento das cidades próximas e a geração de energia, por meio da Usina Hidrelétrica de Sobradinho.

Cerca de 12 mil famílias foram transferidas para as novas sedes construídas pela Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf). Em termos de grandeza, Sobradinho é considerado o maior reservatório do Nordeste, com 4.214 quilômetros quadrados de área inundada, e detém 58,2% do armazenamento de água do São Francisco na região.

Para manter uma boa capacidade hídrica, a barragem depende principalmente da chuva na nascente do Rio São Francisco, localizada no Norte de Minas Gerais. Se não chove lá, não entra água suficiente no reservatório. E a chuva irregular já dura, pelo menos, quatro anos.

O período chuvoso na região vai de setembro a abril. Os meses de novembro, dezembro e janeiro costumam ser os mais chuvosos.

“A situação ficou mais grave no fim do ano passado e início deste ano, quando houve um déficit muito grande de precipitação em dezembro e janeiro”, explica Claudemir de Azevedo, meteorologista do 5º Distrito do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), em Belo Horizonte.

O resultado dessa sequência de pouca chuva é o mais baixo nível de água que já se viu nos quase 40 anos de Sobradinho. No último dia 3, o volume do lago chegou a 1,11% de sua capacidade útil.

Fotografia: Marcello Casal Jr.
Fotografia: Marcello Casal Jr.

Nível baixo de Sobradinho afeta o abastecimento e a agricultura

O sertão vai virar mar
Dá no coração
O medo que algum dia
O mar também vire sertão
(trecho da música Sobradinho, de Sá e Guarabyra)

Do alto, quem vê a barragem de Sobradinho encontra imensas tubulações que se estendem lago adentro e conectam a água do reservatório a um canal. A obra, implementada pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), é uma ação emergencial para evitar o desabastecimento do perímetro irrigado Senador Nilo Coelho. Criado em 1984, o perímetro tem 23 mil hectares divididos entre pequenas, médias e grandes empresas nos municípios de Petrolina, em Pernambuco, e Casa Nova, na Bahia.

“Essa é uma situação emergencial em que a gente não pode tomar uma decisão nem tão antecipada, porque não temos certeza sobre a chuva, nem tão tardia. Nós ficamos nesse dilema sobre qual o momento certo de arregaçar as mangas, mas parece que acertamos”, diz o gerente de empreendimentos de irrigação da Codevasf, Carlos Pinheiro. Devido ao baixo nível de Sobradinho, há um risco de que o canal de aproximação destinado ao perímetro irrigado não consiga mais captar água.

Água para o perímetro irrigado

A obra consiste na instalação de dez bombas flutuantes para pegar água em um ponto mais profundo de Sobradinho. A água passará pelas cinco linhas adutoras e seguirá, por meio de um canal de 2,4 mil metros construído à margem do lago, para distribuição aos produtores. “O São Francisco é nosso pai e nossa mãe. A fruticultura está visceralmente ligada ao rio. Se o rio falhar, temos um efeito dominó”, compara Leonardo Cruz, engenheiro civil responsável pela fiscalização da obra.

Estima-se que a fruticultura irrigada no Nilo Coelho gere 45 mil empregos diretos e indiretos e mais de 400 mil toneladas de alimentos por ano – uma produção de R$ 1,1 bilhão anual. Com a construção do canal e instalação das bombas, mesmo que Sobradinho chegue a 0% de seu volume útil, será possível contar com os cerca de 6 bilhões de metros cúbicos de água que constituem o volume morto.

O empresário Sílvio Medeiros também ficou no limiar entre o que fazer e quando fazer para evitar prejuízos na sua fazenda. Ele produz uva e manga em 600 hectares no perímetro irrigado. Quando percebeu que o baixo volume de água em Sobradinho poderia afetar sua produção, providenciou a compra de equipamentos para a instalação de uma adutora. “Em maio, percebemos que o nível do lago estava muito baixo comparado a anos anteriores. Foi um momento de pânico.”

Graças à chuva que vem alimentando a nascente do Velho Chico, a quantidade de água em Sobradinho vem aumentando. Segundo o boletim diário de acompanhamento da Bacia do São Francisco, divulgado pela ANA, a capacidade do reservatório estava em 1,94% no dia 21 – duas semanas antes, o volume do lago estava em 1,11% de sua capacidade.

Segundo o Inmet, neste mês, até o momento, choveu 200 milímetros na cabeceira do rio. A média histórica de dezembro é 300mm. “A perspectiva é boa. Espera-se que ocorra chuva em janeiro, mas não deverá ser suficiente para suprir o déficit dos reservatórios. Vamos torcer para que esse período chuvoso esteja dentro da média histórica”, aguarda o meteorologista Claudemir de Azevedo.

Com a chegada de água nova, o canal do perímetro irrigado segue captando recursos suficientes para os produtores. “Temos perspectivas de que o nível do lago estabilize, mas não é uma situação confortável para os próximos anos”, explica Carlos Pinheiro. Estima-se que a vazão afluente de Sobradinho (água que entra no reservatório vinda da nascente do rio) esteja em torno de 1.200 m³/s. No mesmo período de 2000, a vazão chegou a 1.800 m³/s.

Fotografia: Marcello Casal Jr.
Fotografia: Marcello Casal Jr.

Longe da água

Fora da área do perímetro irrigado, a situação é diferente. Em Casa Nova, próximo à sede do município, 86 produtores se reuniram em uma associação e construíram um canal para bombear água para as propriedades. A água de Sobradinho não está chegando no lago São Vitor, uma pequena barragem onde as fazendas captam o recurso para irrigação.

“Sobradinho costumava ter um nível estável e todos os anos o lago São Vitor era abastecido, ficando entre 50% e 60% da capacidade. Não tínhamos problema com água. Somente em 2004 houve uma situação parecida, mas este ano foi o pior de todos. Fomos obrigados a fazer uma pequena transposição para não faltar água para os produtores”, relata Fernando Marins, presidente da associação.

Abastecimento das cidades

As cidades em torno de Sobradinho também dependem da água do reservatório. As prefeituras de Casa Nova e Remanso precisaram mudar suas estruturas de captação de água para abastecimento dos municípios. Ambas precisaram levar bombas para um ponto mais profundo do lago. Em Remanso, essa estrutura precisou se afastar cerca de 7 quilômetros do ponto onde antes a água era captada.

Apesar de o abastecimento das cidades estar mantido, a água que chega nas casas não têm pressão suficiente para encher as caixas d’água. “Para encher a caixa, a gente precisa da bombinha. Água tem, mas ela é fraca e não sobe”, conta Regivaldo de Castro, que trabalha com transporte em carroça em Casa Nova.

Em Remanso, há bairros em que a água nem consegue chegar. É o caso da Vila Santana. Considerado o maior da cidade, o bairro tem mais de 6 mil habitantes, segundo a prefeitura. Lá, o abastecimento é feito por carros-pipa.

Odália do Nascimento, dona de casa, conta nos dedos as vezes em que a água correu pelos canos da casa onde mora com dois filhos e dois netos. Nascida em Remanso, ela chegou na cidade há um ano, vinda de uma temporada em São Paulo. Ao voltar, deparou-se com a situação atual de Sobradinho. “Quando cheguei aqui, foi que eu vi. Fiquei muito triste. Eu disse: oxe, o rio está assim? Está lá no final.”

Fotografia: Marcello Casal Jr.
Fotografia: Marcello Casal Jr.

Pouco volume

A redução no volume de Sobradinho gera o temor de que esse mar volte a ser sertão. Desde abril de 2013, a Agência Nacional de Águas (ANA) vem editando sucessivas resoluções reduzindo a vazão da água que sai de Sobradinho em direção à foz do Rio São Francisco (vazão defluente). Esta semana, a vazão deverá passar de 900 metros cúbicos por segundo para 800m³/s. A vazão regularizada é de 2.060 m³/s.

A decisão foi tomada a partir de uma demanda do Operador Nacional do Sistema (ONS), responsável por coordenar a geração e a distribuição de energia pelo país. A intenção é controlar o volume de água presente na barragem para que não chegue ao nível zero. O reservatório tem volume útil de 28 bilhões de metros cúbicos.

A Usina Hidrelétrica de Sobradinho está operando com três turbinas, já que a quantidade de água que sai do lago não é suficiente para se dividir entre as pás de seus seis geradores. Da capacidade total de 1.050 megawatts (mW), só tem sido possível gerar cerca de 165 mW, somando todas as turbinas em funcionamento. Cada turbina pode gerar até 175 mW.

Entre as hidrelétricas instaladas no Nordeste, Sobradinho responde por 10% da energia produzida e distribuída na região. “Apesar de estarmos passando por uma crise hídrica severa, não há risco de as populações ficarem sem água nem risco de desabastecimento de energia. Se vier a acontecer de Sobradinho parar, nós compensaremos essa energia não gerada com outras fontes, como eólica e térmica”, garante José Aílton de Lima, diretor de operação da Chesf.

O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF) critica o pedido de redução da vazão de Sobradinho feito pelo setor elétrico. Enquanto há o controle da água retida no lago, o pouco volume liberado em direção à foz do Velho Chico vem causando prejuízos socioambientais ao longo do percurso do rio.

O presidente do comitê, Anivaldo Miranda, cita que já é possível perceber o agravamento do assoreamento do leito e da erosão das margens do rio, além do impacto na biodiversidade no chamado Baixo São Francisco, entre Alagoas e Sergipe. Miranda cita que há comprometimento da navegação e da captação e qualidade da água para abastecimento de cidades dos estados.

“Quem está a montante [na direção da nascente] quer acumular água e quem está a jusante [mais próximo da foz] quer que mais água seja liberada. São interesses legítimos, mas conflitantes. Defendemos que esses interesses sejam gerenciados com o máximo de diálogo e acompanhamento da situação”, diz Miranda.

Apesar de emitir sua opinião, o comitê não tem poder de decisão sobre essas questões.

Segundo Miranda, antes de decidir pela redução da vazão do lago, seria mais prudente aguardar o comportamento do período úmido na região da cabeceira do Rio São Francisco. Depois disso, em fevereiro e março, quando já haveria conhecimento sobre o volume de água, deveriam ser analisadas as demandas dos setores que utilizam os recursos do rio.

Fotografia: Marcello Casal Jr.
Fotografia: Marcello Casal Jr.

Ruínas revelam memórias dos antigos moradores de cidades inundadas

Vai ter barragem no salto do Sobradinho
E o povo vai-se embora como medo de se afogar
(trecho da música Sobradinho, de Sá e Guarabyra)

O vento forte movimenta as águas no lago de Sobradinho. E as ondas que se formam quebram diante dos degraus da porta de uma das casas tomadas pelo Rio São Francisco após a construção da barragem, no final da década de 1970. De pé sobre o alicerce quebrado, Carlos de Castro, conhecido como Cacá, 63 anos, lembra dos dias em que frequentou o local, na antiga cidade de Casa Nova (BA). Ali morou o seu sogro e sua atual esposa, à época apenas namorada.

Nos quase 40 anos da construção da barragem, esta é a primeira vez que as ruínas de Casa Nova aparecem devido à redução do nível do lago. É possível distinguir alguns detalhes das casas, como as pias de lavar roupa, o azulejo branco e as caixas d’água.

A falta de chuva na nascente do Rio Francisco, no norte de Minas Gerais, tem comprometido o reservatório. A chuva irregular já dura, pelo menos, quatro anos e o resultado é o mais baixo nível de água que já se viu nas quase quatro décadas de Sobradinho. No último dia 3, o volume do lago chegou a 1,11% da sua capacidade.

“Estar no lugar onde você nasceu e se criou faz passar um filme na cabeça”, lembra Castro, que hoje é secretário da Agricultura e do Meio Ambiente do município.

Ele lembra do nome dos moradores de todas as casas vizinhas e aponta para o muro do cemitério. A alvenaria de alguns jazigos hoje está aparente.

Em Remanso (BA), o tempo parece voltar atrás quando as águas retidas na barragem de Sobradinho assumem o antigo curso natural do Velho Chico. O nível da água baixou e se afastou cerca de 7 quilômetros da margem, revelando o antigo cais da cidade. Essa é também a distância entre a velha e a nova Remanso.

“Aqui era onde passavam os vapores. O pessoal dessa região que ia para São Paulo pegava um vapor até Pirapora [município mineiro que fica às margens do Rio São Francisco], passava oito, dez dias viajando, e de lá pegava o trem para São Paulo”, lembra Pedro Alves da Costa, 61 anos, chefe de gabinete da prefeitura do município. Ele morava em Sento Sé e se mudou com a esposa em 1975 para Remanso antiga, onde abriu um comércio.

Hoje, o mesmo cais voltou a ser usado. Do local, partem as embarcações que vão para cidades que ficam em volta do lago. O baixo nível das águas no trecho, que fazem aparecer bancos de areia, vem dificultando as viagens. “Antes a gente passava direto aqui”, diz José Messias, apontando para a margem oposta do lago, enquanto preparava sua embarcação rumo a Sento Sé. “Agora a gente arrodeia lá por baixo. A viagem demora uma hora e pouco, duas horas a mais.”

Entre 1975 e 1977, as quase 12 mil famílias de Casa Nova, Remanso, Pilão Arcado e Sento Sé foram obrigadas a deixar suas casas e se mudar para as novas sedes das cidades. Os antigos municípios foram engolidos pelo São Francisco e deram lugar a 34 bilhões de metros cúbicos de água. As famílias foram transferidas para os locais construídos pela Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf).

A professora aposentada Mara Lília Fernandes Castro, 66 anos, lembra das reuniões entre a população de Casa Nova e os engenheiros da Chesf. “Víamos o descontentamento de alguns, outros não aceitavam, diziam que isso não podia acontecer. Outros acreditavam no progresso, que realmente veio. Era uma cidade gostosa pela convivência, todos se conheciam, mas lá nossa energia elétrica terminava às onze horas da noite porque era gerada por um motor a diesel.”

Mara se mudou com o marido, hoje falecido, e três filhos pequenos – o mais novo com 1 ano e meio de idade. Na parede de casa, ela mantém algumas fotos da antiga Casa Nova. Em uma delas aparece a antiga igreja matriz, implodida devido à altura de sua torre, que poderia gerar riscos à navegação.

De acordo com o historiador Moisés Almeida, diretor do campus de Petrolina da Universidade de Pernambuco (UPE), a Chesf usou dois fortes argumentos para convencer as famílias das quatro cidades sobre a importância da construção da barragem de Sobradinho: a água serviria para o desenvolvimento da região e as pessoas teriam moradias melhores.

Ainda segundo ele, as populações das cidades foram pegas de surpresa. “Teve gente que gostou da realocação, pois vivia numa casa que não era rebocada, não tinha piso, e mudou para uma casa com uma infraestrutura melhor. Mas teve quem não concordou, como as pessoas que moravam à beira do rio. Além disso, havia dúvidas sobre as indenizações. Ainda hoje há ações na Justiça questionando isso”, relata Almeida.

Além da surpresa, a ideia de que as cidades seriam inundadas gerava medo, especialmente nos mais velhos. O dia em que a água chegaria era comparado ao dilúvio, relatado na Bíblia.

Busca por direitos

Em Remanso, durante os trâmites das indenizações, Pedro da Costa foi procurador de várias pessoas analfabetas e tem lembranças de um processo quase impositivo.

“A população da cidade era ribeirinha, estávamos no regime militar, os sindicatos não se posicionavam”, relembra.

“Quem tomou algumas posições foi dom José Rodrigues de Souza [bispo de Juazeiro entre 1975 e 2003. Na época da construção da barragem criou a Comissão Pastoral da Terra Regional Nordeste 3, que abrangia Bahia e Sergipe] junto com os padres das cidades. No entanto, o advogado da Chesf agia assim: fazia as contas, mostrava o papel para os moradores e dizia: ‘assine! Quer assinar? Se não quer, pode ir para a Justiça!’.”

Segundo Pedro, as indenizações eram baixas, mas a principal perda dos ribeirinhos foi a inundação das terras férteis às margens do Rio São Francisco. Muitos tiveram prejuízos com a morte do gado, por exemplo, que não conseguiu conviver com o pasto escasso na caatinga.

O historiador da UPE também destaca o papel mobilizador de dom José Rodrigues Sousa e de sua equipe pastoral, que procurou esclarecer a população sobre aquilo a que tinham direito e a reivindicar uma indenização justa. À época da construção da barragem, o Brasil vivia em pleno regime militar e a região da obra foi considerada área de segurança nacional – o que dava aos militares a chancela para uso da força caso houvesse alguma resistência popular.

O professor avalia que, para além das questões relativas ao valor das indenizações e da perda de propriedades, são incalculáveis os prejuízos imateriais da realocação das cerca de 12 mil famílias de Casa Nova, Remanso, Pilão Arcado e Sento Sé. “Elas viviam numa terra, moravam e viviam do rio, e essa realidade teve de ficar somente na lembrança e na saudade.”

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