Por pressão da bancada ruralista, o Senado Federal aprovou um requerimento de urgência para colocar em votação o projeto de lei que regulamenta a emenda constitucional 81/2014 (antiga PEC do Trabalho Escravo), que prevê o confisco de propriedades em que esse crime for encontrado. Seria uma boa notícia se a regulamentação (PLS 432/2013) não deixasse de fora metade do conceito de escravidão contemporânea, retirando a parte que protege a dignidade do trabalhador – o que vai facilitar a vida de empregadores flagrados com essa forma de exploração do ser humano.
A proposta que deve ir à votação no plenário do Senado pretende ajudar a acabar com o trabalho escravo mudando o que é trabalho escravo e não combatendo diretamente o problema e surge em meio à balbúrdia que se instalou no Congresso em meio à discussão sobre o impeachment.
Para ajudar a entender, façamos paralelos: aceita-se punir casos de estupro. Mas só nos casos em que a vítima for ameaçada com arma de fogo. Caso contrário, não vale. Ou aceita-se punir homicídios. Desde que o bandido tenha gravado um vídeo com o assalto e postado no YouTube ou em seu Instagram. Enfim, aceitamos criar uma nova lei para punir o crime desde que seja usada a nossa definição e não aquela que está na lei vigente.
A proposta de regulamentação da emenda estava tramitando na Comissão de Constituição de Justiça e Cidadania do Senado e havia um acordo com a Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo para que fossem convocadas mais audiências públicas a fim de ouvir trabalhadores, atores envolvidos do combate ao trabalho escravo, sociedade civil, empresários, entre outros. Depois de votada na comissão, a proposta seria enviada ao plenário do Senado e, depois, da Câmara. Mas parlamentares ruralistas obtiveram o apoio de líderes partidários para que a matéria fosse retirada da CCJC e trazida para votação ao plenário diretamente. De acordo com assessores ouvidos por este blog, a proposta deve ser analisada nesta quinta.
Vale lembrar que o Senado tem assumido seu papel de câmara revisora nos últimos tempos, evitando que certos desatinos da Câmara dos Deputados que colocariam direitos fundamentais em risco fossem facilmente transformados em lei. Neste projeto, como a palavra final fica com os deputados federais, é importante que o debate entre os senadores seja feito sem açodamento.
De acordo com o artigo 149, são elementos que determinam trabalho análogo ao de escravo: condições degradantes de trabalho (incompatíveis com a dignidade humana, caracterizadas pela violação de direitos fundamentais coloquem em risco a saúde e a vida do trabalhador), jornada exaustiva (em que o trabalhador é submetido a esforço excessivo ou sobrecarga de trabalho que acarreta a danos à sua saúde ou risco de vida), trabalho forçado (manter a pessoa no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas) e servidão por dívida (fazer o trabalhador contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a ele).
O projeto quer retirar os dois primeiros elementos da caracterização de trabalho escravo, as condições degradantes e a jornada exaustiva.
Não é apenas a ausência de liberdade que faz um trabalhador escravo, mas sim de dignidade. Todo ser humano nasce igual em direito à mesma dignidade. E, portanto, nascemos todos com os mesmos direitos fundamentais que, quando violados, nos arrancam dessa condição e nos transformam em coisas, instrumentos descartáveis de trabalho.
Vira e mexe ouve-se o argumento falso de que fiscais do trabalho consideram como trabalho escravo a pequena distância entre beliches, a espessura de colchões, a falta de copos descartáveis no intuito de deslegitimar a ausência de dignidade como elemento caracterizador de trabalho escravo. Tentando essas manobras, a bancada ruralista promove “insegurança jurídica” no campo e na cidade. Eles afirmam que não há clareza sobre o conceito de trabalho escravo, porque não concordam com o conceito de trabalho escravo.
Agora, se o conceito de trabalho escravo que leve em conta a dignidade do ser humano, que leve em conta ele não ser tratado como instrumento descartável de trabalho, continuar incomodando, pode-se também discutir a revogação do artigo 149 do Código Penal, que trata do tema. Ou, melhor, por que não revogamos de uma vez a lei assinada por Isabel em 13 de maio de 1888?
Afinal, fazer algumas emendas à Lei Áurea seria apenas um pequeno sacrifício dos trabalhadores para impulsionar o progresso.
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Trabalhador libertado mostra o que são condições degradantes de trabalho: a água suja que bebia, a mão machucada por falta de luvas na aplicação de pesticida, a ausência do dedo que perdeu por inexistência de equipamentos de proteção. Ficou de fora a comida estragada que era fornecida a eles e o alojamento precário (Foto: Leonardo Sakamoto)