Cercada pela CSN, floresta em Volta Redonda entra na mira da Justiça

Dona da área verde, siderúrgica tenta diminuir a atuação de órgãos públicos na mata

Por Vera Araújo, O Globo

“Cria” da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), como faz questão de dizer, o aposentado Cosme Teodoro Ferreira, de 87 anos, gosta de se lembrar da algazarra que os filhos faziam, há mais de quatro décadas, correndo pela Floresta da Cicuta, encravada na cidade de Volta Redonda. As gerações seguintes não tiveram a sorte de se divertir da mesma forma. Hoje, a área de proteção ambiental, considerada o pulmão verde do município e cheia de espécies remanescentes de Mata Atlântica, é cercada. Os portões ficam permanentemente trancados com cadeados. Uma empresa de vigilância proíbe a entrada de moradores da região. A CSN, que empregou Cosme quando era uma estatal, foi privatizada em 1993. No “pacote”, os novos proprietários levaram, de “porteira fechada”, a floresta de cem hectares, tamanho equivalente ao de cem campos oficiais de futebol.

Há um mês, o Ministério Público Federal (MPF) detectou o que chamou de manobra para diminuir a atuação de órgãos públicos na proteção à floresta. Segundo a instituição, a CSN requisitou à presidência do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio), responsável pela fiscalização, a mudança na classificação da floresta de Área de Relevante Interesse Ecológico (ARIE), criada por lei em 1985, para Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN). Segundo procuradores, se a alteração for aprovada, técnicos do ICMBio que atuam na unidade ambiental serão dispensados, o que representaria um risco à preservação da mata.

PROCURADOR FAZ RECOMENDAÇÃO

Em uma tentativa de reverter o processo, o MPF recomendou ao ICMBio que rejeite qualquer pedido da empresa. Uma eventual modificação da categoria da área verde, alerta o Ministério Público Federal, ampliaria os poderes da CSN sobre a floresta, tornando-a totalmente privada.

Não é de hoje que o MPF está numa queda de braço com a CSN. Em 2008, a siderúrgica assinou um termo de compromisso com o ICMBio que previa a construção de uma sede administrativa no acesso principal à floresta, incluindo um centro de visitação e de apoio à educação ambiental, além da elaboração de um Plano de Manejo (documento técnico para estabelecer o zoneamento da área protegida e de seus recursos naturais). Segundo o procurador da República Júlio José Araújo Junior, o acordo não foi cumprido até hoje. O MPF instaurou um inquérito civil público exigindo que a empresa cumpra o compromisso, e ainda há uma ação popular em curso, contestando o domínio da unidade de preservação.

— Antes da recomendação à presidência do ICMBio para suspender o trâmite de mudança de categoria da floresta já tínhamos pedido à CSN que não criasse restrições aos fiscais da autarquia federal, que têm de avisar previamente sobre as inspeções rotineiras e emergenciais, o que é um absurdo. Agora, se mudar para RPPN, nem fiscalização haverá, pois tal tarefa passará para a CSN, que é contumaz violadora da legislação ambiental. Também emitimos um parecer questionando o desvio de função pública da floresta — disse o procurador, lembrando que, quando foi entregue à siderúrgica, a unidade ambiental deveria ter sido desapropriada em benefício da população.

POSSÍVEL INTERESSE NO ENTORNO

O procurador da República Rodrigo Timoteo da Costa e Silva, que também assina ações contra a CSN, ressalta que, por trás da mudança de classificação da floresta pode existir interesse na negociação do entorno, chamado tecnicamente de área de amortecimento:

— A RPPN é uma das 12 categorias de unidade de conservação. Se a floresta ficar menos protegida, abre-se uma brecha para que outros parques também sejam convertidos. Deixamos de afetar uma área de interesse público. A floresta passa a ser predominantemente particular. Com a mudança, essa área fica protegida em cartório, mas o entorno da Floresta da Cicuta, que tem fragmentos de Mata Atlântica que praticamente dobram o tamanho dela, ficará desprotegido. Esse entorno pode ser usado para aterro de resíduos ou virar objeto de especulação imobiliária.

Nas recomendações feitas pelo MPF ao ICMBio, os procuradores ressaltam que a CSN já aguarda a aprovação de um Estudo de Impacto Ambiental-Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) por parte do Instituto Estadual do Ambiente (Inea) para implantar um aterro industrial de resíduos na histórica Fazenda Santa Cecília, que, usada pelo presidente Getulio Vargas como local de descanso, fica na Cicuta.

Presidente do ICMBio, Cláudio Maretti confirmou que recebeu um pedido verbal por parte da CSN, registrado em ata, para a mudança de categoria da área. Ele destacou que o documento não foi revisado pelas duas partes:

— Nós dissemos que não nos oporíamos ao pedido. No entanto, para isso ser efetivado, é necessário que alguns procedimentos sejam tomados. Primeiramente, é preciso ouvir o MPF e fazer um acordo que seja revalidado na Justiça. Como essa área protegida é decorrente de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), não caberia a nós fazermos a modificação de forma unilateral. Em segundo lugar, a mudança da categoria implicaria uma alteração legal, que precisa ser aprovada pelo Congresso Nacional. Isso deveria ser feito pela empresa e, aí sim, nos pronunciaríamos formalmente a respeito do tema.

Segundo Maretti, por meio de um parecer de um jurista, a CSN sugeriu que a mudança seja feita por decreto, mas o ICMBio informou que isso não é possível:

— É uma mudança que precisa ser discutida com a sociedade local. A área tem importância para o reflorestamento das áreas que margeiam os rios do Vale do Paraíba. Isso tem que ser feito com o apoio da sociedade. As duas categorias, ARIE e RPPN, permitem proteger a floresta e a abertura para visitação. Se a reserva for privada, a CSN se encarrega de administrá-la. Porém, nossa responsabilidade na fiscalização se aplica em ambas as formas, apenas não teremos que ficar diuturnamente de olho na empresa, pois a comunidade também exerce esse papel.

Embora o ICMBio saiba que a relação da CSN com os moradores não é boa, devido ao fechamento da floresta, Maretti acredita que os envolvidas precisam chegar a um denominador comum.

— Nós entendemos que a RPPN é tão válida quanto a ARIE. Se a CSN infringir a lei, aí sim, teremos que autuar. Uma reserva privada, pela lei nacional, é de caráter permanente de responsabilidade do proprietário, mas também é uma unidade de conservação e protegida, assim como num parque nacional. A solução não é buscar um órgão federal para ficar permanentemente por lá. Se a empresa não convencer o MPF e a comunidade, estaremos lá. Mas, por outro lado, se houver um acordo e a CSN cuidar da gestão, teríamos mais condições de olhar regiões de importância nacional, como a Floresta da Tijuca — afirmou o presidente do ICMBio.

SIDERÚRGICA SE DEFENDE

Ao defender a recategorização da Floresta da Cicuta, a CSN argumenta,por meio de uma nota, que “é o melhor modo de gestão da área”. A siderúrgica diz ainda que a afirmação de que planeja usar o entorno para algum empreendimento ou aterro é “absurda”.

Sobre o relacionamento com os moradores da cidade, a CSN ressalta que é a maior empregadora da região do Médio Paraíba e que, nos últimos anos, investiu mais de R$ 400 milhões em ações ambientais. Também informou que sempre abriu as portas para a fiscalização do ICMBio. Ela se justificou em relação à exigência de avisos sobre as inspeções: precisa acionar alguém para abrir os portões, o que demanda tempo.

Imagem: Da Floresta da Cicuta dá para avistar a Companhia Siderúrgica Nacional: com espécies remanescentes de Mata Atlântica, a área de proteção ambiental está cercada – Gabriel de Paiva / Agência O Globo

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Julio Araujo.

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