SUS: “Brasil nunca investiu para viabilizar plenamente o acesso à saúde”. Entrevista especial com Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro

“O Brasil, até o ano passado, era a sétima economia do mundo e o 72º em investimento em saúde. Não há gestão eficiente que seja capaz de entregar serviços de excelência sem o financiamento adequado”, afirmam os médicos

Por Patricia Fachin – IHU On-Line

“O setor privado conta com quase 60% do que é gasto anualmente em saúde para dar conta da assistência de cerca de 25% da população, enquanto o pouco mais de 40% de recursos restantes deve dar conta da assistência dos demais 3/4 em situações ordinárias, além de atender os que têm planos de saúde em tratamentos que os planos se isentam de cobrir”, dizem Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por e-mail.

Segundo os médicos, o estímulo do Estado brasileiro ao setor privado de saúde ocorre desde meados da década de 1960, via incentivos fiscais. “Até hoje incentiva, através de desconto no imposto de renda de despesas com saúde e isenção de impostos de serviços classificados como filantrópicos, entre eles os muitos dos principais hospitais particulares do país. Parte deste incentivo se deu com objetivo de utilizar os serviços de uma rede já instalada, mas sua intensificação tem a ver com o financiamento de campanhas para os legislativos e executivos”, afirmam.

Na avaliação dos médicos, atualmente várias propostas políticas tentam desmantelar o Sistema Único de Saúde, como a Proposta de Emenda Constitucional – PEC 451, de autoria do deputado Eduardo Cunha, que “inclui, como garantia fundamental, plano de assistência à saúde, oferecido pelo empregador em decorrência de vínculo empregatício, na utilização dos serviços de assistência médica” e a PEC 358/13, conhecida como PEC do ‘Impositivo’, “que garante aos parlamentares disporem de 15% do orçamento da saúde, a ser destinado a partir de emendas (…). São diversas evidências de que existem iniciativas institucionais de favorecimento do setor privado ao custo do desmantelamento do SUS”, pontuam. Segundo eles, “há um campo político, em torno da liderança de Eduardo Cunha, com uma agenda que pode ter sérios efeitos no SUS, por exemplo, pela limitação do atendimento de mulheres vítimas de estupro, que inclui a possibilidade de aborto legal. A proposta de Cunha é que se exija o boletim de ocorrência e exame de corpo de delito, retrocedendo numa garantia que data da década de 1940”.

Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro reforçam que atualmente o “sistema público possível para o Brasil é o SUS, não há possibilidade de uma inflexão, de um novo sistema que garanta que seus avanços que tivemos sejam preservados. É necessário haver maiores recursos e parâmetros de gestão que orientem o funcionamento dos serviços. Apesar de suas dificuldades, por sua orientação humanista, é o SUS (funcionando nos termos do que está garantido na nossa Constituição) que pode garantir que o Brasil ofereça saúde com dignidade para todos”.

Gerson Salvador de Oliveira é graduado em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – USP, especialista em Infectologia pela mesma universidade. Médico assistente da Divisão de Clínica Médica do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo e infectologista do Instituto de Medicina Física e Reabilitação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.

Pedro Carneiro é graduado pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto pela Universidade de São Paulo e mestrado em Saúde na Comunidade pela Universidade de São Paulo.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Evidencia no Brasil um movimento em que o Estado está privilegiando planos de saúde em detrimento do SUS? Se sim, desde quando isso vem acontecendo e por quais razões?

Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro – Desde meados da década de 1960 o Estado brasileiro estimula o setor privado em saúde, via incentivos fiscais. Até hoje incentiva, através de desconto no imposto de renda de despesas com saúde e isenção de impostos de serviços classificados como filantrópicos, entre eles os muitos dos principais hospitais particulares do país. Parte deste incentivo se deu com objetivo de utilizar os serviços de uma rede já instalada, mas sua intensificação tem a ver com o financiamento de campanhas para os legislativos e executivos. O poder de lobby das empresas de saúde tem se intensificado e a representação no parlamento de defensores do Sistema Único de Saúde tem diminuído.

IHU On-Line – Identifica uma tentativa de desmantelar o SUS? Quais são as evidências de que isso está acontecendo?

Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro – Garantir atenção integral à saúde de toda nossa população custaria muito, e o Brasil nunca investiu num patamar que pudesse viabilizar plenamente esse direito. Em tempos de crise há algumas iniciativas claras de desmantelamento do que existe, como por exemplo, por parte do Governo Federal: a PEC 86, que estabelece que os percentuais mínimos para investimento em saúde devem ser calculados não mais sobre a receita bruta do Estado, mas sobre a receita corrente líquida; a Lei de Diretrizes Orçamentárias em que os recursos previstos para custear a saúde pública não chegam ao mês de outubro de 2016; a “Agenda Brasil”, proposta pelo Senador Renan Calheiros que em seu texto original orientava “avaliar possibilidade de cobrança diferenciada de procedimentos do SUS por faixa de renda”; a proposta do deputado Eduardo Cunha: PEC 451 que “inclui como garantia fundamental, plano de assistência à saúde, oferecido pelo empregador em decorrência de vínculo empregatício, na utilização dos serviços de assistência médica”; PEC “do Impositivo” que garante aos parlamentares disporem de 15% do orçamento da saúde, a ser destinado a partir de emendas; a aprovação pela Câmara de Medida Provisória, que visava anistiar dívidas bilionárias de multas das empresas de medicina de grupo, vetada pela presidente Dilma. São diversas evidências de que existem iniciativas institucionais de favorecimento do setor privado ao custo do desmantelamento do SUS.

IHU On-Line – Que avaliação faz dos SUS ao longo desses 25 anos? Quais foram os avanços e quais ainda são as principais dificuldades do Sistema Único de Saúde brasileiro?

Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro – A saúde a ser garantida como direito de todos e dever do Estado em nossa Constituição, através de um sistema único, provavelmente é a maior conquista cidadã da história de nossa República. Houve grandes avanços: o Plano Nacional de Imunizações; a oferta de atenção primária à saúde, principalmente através da estratégia saúde da família; o programa nacional de HIV/AIDS; os serviços de transplantes e captação de órgãos; a atenção pré-hospitalar a partir do SAMU; entre outros. Os principais obstáculos: financiamento insuficiente, serviços com qualidade muito heterogênea, dificuldade de acesso à atenção especializada na maioria dos municípios, leitos de internação insuficientes, emergências lotadas, recursos humanos com formação muito heterogênea e com vínculos dos mais variados devido à “salada” que existe na gestão da saúde pública: há servidores federais, estaduais e municipais admitidos por concursos, outros contratados por autarquias, outros através de terceirizações, organizações quer seja para formação quer seja para a carreira dos profissionais de saúde.

IHU On-Line – A que atribui as dificuldades do SUS, como a oferta insuficiente de serviços e os déficits de leitos de internação, por exemplo? O problema é orçamentário, de gestão ou outras razões? Quando se trata de funcionamento do SUS, que pontos fundamentais devem ser considerados?

Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro – Em resumo há problema de gestão, há problema de recursos humanos, mas o financiamento é muito insuficiente. O Brasil, até o ano passado, era a sétima economia do mundo e o 72º em investimento em saúde. Não há gestão eficiente que seja capaz de entregar serviços de excelência sem o financiamento adequado.

IHU On-Line – Quais são as principais contradições que percebe entre o financiamento do Estado ao setor privado e ao setor do SUS?

Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro – O setor privado conta com quase 60% do que é gasto anualmente em saúde para dar conta da assistência de cerca de 25% da população, enquanto o pouco mais de 40% de recursos restantes deve dar conta da assistência dos demais 3/4 em situações ordinárias, além de atender os que têm planos de saúde em tratamentos que os planos se isentam de cobrir: atenção pré-hospitalar, emergências, tratamentos para câncer, transplantes, medicamentos para HIV e hepatites virais por exemplo, além de ações de vigilância e imunizações para toda a população.

Ao SUS cabe, como diz o professor Ricardo Teixeira, fazer muito mais com muito menos. Além do orçamento insuficiente, a União continua oferecendo descontos no imposto de renda para serviços privados e isentando de impostos grandes serviços privados classificados como filantrópicos.

IHU On-Line – Que comparações faz entre o SUS e o sistema de saúde público de outros países da América Latina?

Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro – O Brasil é o único país da América Latina que oferece sistema universal de atenção à saúde não só a seus cidadãos, mas também a estrangeiros. Mas o financiamento per capita é menor do que a média de países da América Latina.

IHU On-Line – De que modo, além da questão do financiamento, a crise política pode impactar no SUS?

Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro – Há um campo político, em torno da liderança de Eduardo Cunha, com uma agenda que pode ter sérios efeitos no SUS, por exemplo, pela limitação do atendimento de mulheres vítimas de estupro, que inclui a possibilidade de aborto legal. A proposta de Cunha é que se exija o boletim de ocorrência e exame de corpo de delito, retrocedendo numa garantia que data da década de 1940. Há disposição de tentar proibir a pílula do dia seguinte também. O estatuto da família, a redução da maioridade penal, a iniciativa de cancelar o estatuto do desarmamento, caso essas propostas sejam aprovadas, caberá ao SUS atender às pessoas afetadas.

IHU On-Line – O que seria um sistema de saúde público possível para o Brasil neste atual momento?

Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro – O sistema público possível para o Brasil agora é o SUS, não há possibilidade de uma inflexão, de um novo sistema que garanta que os avanços que tivemos sejam preservados. É necessário haver maiores recursos e parâmetros de gestão que orientem o funcionamento dos serviços. Apesar de suas dificuldades, por sua orientação humanista, é o SUS (funcionando nos termos do que está garantido na nossa Constituição) que pode garantir que o Brasil ofereça saúde com dignidade para todos.

Foto: prsouza.wordpress.com

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