Índios condenam desastre e dizem que Rio Doce está morto

Povo Krenak, que vive às margens do curso d’água desde antes da chegada de Cabral, tem cultura arrasada. No Espírito santo, ações de mineradora são criticadas

Paulo Henrique Lobato – Enviado especial Estado de Minas

Resplendor – A pequena Alice, de 3 anos, não disfarça a tristeza quando fala do “Uatu Nek”, o rio em que ela diariamente tomava banho enquanto o pai, Itamar, tratava de garantir o pescado para ser servido no almoço e no jantar. “Não entro mais na água. A lama venenosa matou tudo”, diz a garotinha, da tribo Krenak, que desde antes da chegada de Pedro Álvares Cabral ao continente vive às margens do Rio Doce, como os brancos batizaram o curso d’água que agora fazem agonizar.

“Nossa relação com o rio é bem mais antiga. Sempre estivemos aqui. Hoje somos 450 pessoas e não usamos o leito apenas para o banho, para retirar o alimento do dia a dia. Há questões culturais e religiosas. E agora? Os krenak estão tristes, porque o Uatu Nek morreu”, desabafa Itamar. Ele e sua gente ocupam uma área de 4,9 mil hectares quadrados em Resplendor, no Leste de Minas, a 500 quilômetros de Belo Horizonte.

Itamar é professor e diretor da escola que funciona na tribo. Na última semana, deu uma tarefa aos alunos: fazer um desenho ou uma redação sobre o Uatu. Alice, a filha, usou vários lápis coloridos para traçar o largo leito, o paredão de pedras próximo ao rio e algumas espécies de animais e plantas que vivem no curso d’água. “Antes da lama, tinha muito bok (peixe), rokrok (garça), rimbom (capivara), pomba (pato)… Tinha bicho que ia beber água. Ia gundhum (tatu), ia gran (cobra)”, conta a menina.

A lama de minério que devastou a vida aquática no Uatu mudou a rotina dos krenak. “Nossa alimentação vai ter de mudar, porque nosso principal prato é o peixe. Agora temos medo de comer até animais que vivem na terra, como tatu, pois não sabemos se beberam da água com minério”, justifica Adauto, um dos caciques da tribo.

Até a rotina da confecção das armas usadas na caça deixou de ser a mesma. O material do arco e da flecha é retirado de uma espécie de árvore que, na aldeia, só é achada nas ilhas do Doce. “Não estamos indo lá, porque temos medo do contato com a água suja”, explica Itamar. Os rejeitos despejados nas margens também mataram plantas medicinais usadas pelos índios. “Não encontramos mais ervas-cidreiras, usadas para febres”, reclama o cacique, enquanto percorre uma das margens.

Na caminhada, Adauto avista, do outro lado do leito, os trilhos por onde as locomotivas da Vale puxam, todos os dias, centenas de vagões abarrotados com minério de ferro. Na semana em que houve o rompimento da barragem da Samarco, empresa que tem a Vale como uma das controladoras, os krenak fecharam a ferrovia por três dias.

A estrada de ferro corta a terra indígena entre o leito e o paredão desenhado por Alice. Na parte externa da rocha, há pinturas rupestres. Na interna, imensas cavernas. “Quem causou essa tragédia tem que resolver o problema. A vida precisa voltar ao longo do Uatu. Temos esperança de tê-lo de volta, como era antes”, deseja Itamar.

COMBATE A ligação dos krenak com o Uatu começou antes da chegada das caravelas comandadas por Cabral. Por séculos, eles ocuparam parte do que hoje é Minas Gerais e o Espírito Santo. Foram combatidos por europeus e bandeirantes.

Nem mesmo o governo deu trégua. No fim da década de 1970, por exemplo, o regime militar expulsou os índios da área e construiu uma prisão a cerca de 500 metros do rio. “Quando o povo voltava, o governo expulsava novamente. Até que em 1979 houve uma grande enchente. A força d’água derrubou parte (dos imóveis) que construíram aqui. Os militares desistiram. Foi assim que nós voltamos. O rio nos trouxe de volta. Agora, queremos trazer a vida de volta no Uatu”, planeja Itamar.

Importante desde a produção de instrumentos de caça até rituais, o Uatu Nek, como os krenak o chamam, está envenenado. Índios temem comer animais que beberam da água (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)

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