Resposta da Warã à matéria da Folha de S. Paulo sobre diabetes entre os Xavante

No CTI

Em resposta à matéria “Refrigerante e doce provocam epidemia de diabetes em índios em MT” publicada no jornal Folha de São Paulo no dia 09 de agosto de 2015, percebemos a necessidade de prestar alguns esclarecimentos sobre os fatos narrados.

O problema da prevalência do diabetes entre os Xavante é conhecido desde o ano 2007 quando foi publicado o trabalho “Prevalência de diabetes mellitus em índios Xavante de Sangradouro-MT”, do professor João Paulo Botelho Vieira Filho, citado pela matéria da Folha de São Paulo.

Como é de conhecimento geral, o abuso na ingestão de alimentos ricos em açúcares não é um problema exclusivo do povo Xavante. Sabemos que esse é um problema que atinge diversos outros grupos indígenas brasileiros e mais ainda os não indígenas. Não é incomum vermos nos meios de comunicação que hoje em dia, no mundo inteiro, os problemas relacionados à obesidade matam mais do que a própria fome.

No caso do povo Xavante, entretanto, podemos apontar algumas causas bem específicas para que esse problema se tornasse tão grave quanto é hoje:

Inicialmente, a partir de meados dos anos 50 do século XX, quando com a chamada “Marcha para o Oeste” nosso território tradicional, sob determinação do governo federal brasileiro, começou a ser definitivamente invadido, transformado (desmatamento) e ocupado permanentemente, nossas atividades produtivas tradicionais foram completamente desarticuladas devido à destruição ambiental e aos constantes ataques, massacres e deslocamentos a que nosso povo foi forçado. É importante dizer que nossos antepassados construíram um extenso conhecimento sobre o cerrado, sobre os animais e plantas que o habitam e sobre sua sazonalidade. Além de terem compartilhado conosco informações sobre o comportamento de animais e plantas do cerrado, nossos ancestrais nos deixaram uma grande herança, os cultivares tradicionais xavante: as diferentes espécies de milho xavante (Nodzô), o feijão xavante (Uhi),  a mandioca (Upa), e diversos tipos de batatas do cerrado (mo’oni , mo’oni hoi’ré, ubdi, patede dure Wö). Numa situação de guerra, como a que fomos submetidos, é impossível manter um calendário agrícola minimamente estruturado.

Posteriormente, com a demarcação das terras indígenas xavantes aqui no Mato Grosso, o problema se agravou e se cristalizou. Nos pedaços de terra reservados aos xavantes, nem sempre se encontravam as condições edáficas para que nossa agricultura tradicional fosse reproduzida. Além disso, a demarcação das terras indígenas contemplou apenas parte do nosso território tradicional e o mais grave: de maneira fragmentada. Hoje estamos divididos em oito terras indígenas cercadas por plantações de soja que são cultivadas com enormes quantidades de agrotóxicos.

As soluções encontradas pelo estado brasileiro para o problema da insegurança alimentar entre os xavante foram as piores possíveis: grandes projetos governamentais, nos anos 1970 e 1980 com o objetivo de transformar os xavantes em plantadores de arroz e criadores de gado. Além de essas duas atividades serem totalmente estranhas à cultura xavante, elas envolviam apenas um fragmento do contingente populacional xavante na sua prática, o que causou diversos problemas sociais.  È desnecessário dizer que também causaram diversos problemas ambientais pois são de conhecimento comum os prejuízos causados ao ambiente por tais práticas. Quando, por questões políticas, foi interrompido o aporte de recursos que garantia a continuidade de tais projetos, as atividades praticamente cessaram. No entanto, apesar do arroz ter continuado a ser produzido em algumas localidades,  o hábito de comer arroz já estava incutido na população.

Somam-se a este quadro as políticas assistencialistas de diversos órgãos governamentais e práticas assistencialistas de entidades religiosas, que contribuíram para afastar os jovens das atividades produtivas tradicionais cada vez mais.

Diante dessa total desarticulação das atividades produtivas tradicionais, a crescente urbanização e o aumento da infraestrutura, como o advento das BRs (070 e 158), por exemplo, acabaram por promover um acesso completamente desregulado e desinformado dos xavantes aos alimentos industrializados.

A partir dos anos 1990, tal quadro se agravou com o aumento no fluxo de dinheiro nas aldeias, advindo de aposentadorias, benefícios e salários pagos a xavantes contratados principalmente por órgãos governamentais federais, estaduais e municipais. Mais recentemente, o acesso aos programas sociais que simplesmente “entregam” dinheiro aos xavantes, sem nenhuma orientação prévia (como uma “educação financeira” ou “educação para o consumo”) piorou ainda mais o quadro.

Desnecessário dizer que nunca recebemos nenhum tipo de “educação alimentar”; ou seja, nunca tivemos orientação ou informação, de maneira estruturada e consistente, sobre a alimentação dos não indígenas e os perigos que tais alimentos, vendidos livremente em qualquer estabelecimento comercial, podem causar para a nossa saúde, inclusive o papel do Estado brasileiro não conseguiu minimizar em questão da saúde indígena xavante como a forma de fazer prevenção em educação alimentares. Das 34 DSEIs no país, que tem maior mortalidade indígena e o DSEI Xavante que em segunda maior mortalidade no país.

Diante desse quadro, o que fazer para atacar esse problema?

Primeiramente, incentivo e apoio por parte dos órgãos governamentais à revitalização das atividades produtivas por meio da execução de projetos para multiplicar as sementes e cultivares tradicionais, promover a agricultura tradicional xavante, incentivar a revitalização de práticas culturais ligadas às expedições de caça e de coleta de alimentos. Sabemos que a lei 11.947 de 16 de junho de 2009 determina que 30 por cento dos recursos destinados à compra de alimentos para merenda escolar devem ser gastos com agricultura familiar. No nosso caso, se esses recursos fossem gastos comprando alimentação tradicional xavante, além de incentivar os agricultores xavantes a produzir a alimentação tradicional, ajudaria a acostumar as crianças com a comida xavante.

Outro ponto importante é a educação alimentar. Precisamos de programas por parte da SESAI que tenham o objetivo de levar às aldeias orientação a respeito da alimentação dos não indígenas de maneira eficaz e consistente. Para que tal objetivo seja alcançado, a SESAI precisa melhorar sua comunicação com a comunidade e  não deve contratar apenas profissionais não indígenas, deve valorizar nosso conhecimento tradicional e contratar as mulheres xavantes especialistas na alimentação tradicional xavante.

Precisamos também de melhora no serviço de saúde, pois os casos de diabetes demoram a ser diagnosticados e quando são, não são tratados de maneira adequada. Muitas vezes os funcionários da saúde indígena não conhecem nossa realidade nem estão dispostos a ouvir nossas demandas.

Por fim, o  ponto fundamental; a questão da terra. Como já mencionado acima, o território xavante além de ter tido apenas uma fração de sua extensão original demarcada em sete terras indígenas, foi demarcado de maneira fragmentada. Isso criou uma serie de problemas sociais e ambientais, entre eles a dificuldade de manutenção das atividades produtivas tradicionais, uma vez que nesses fragmentos de cerrado, cercados por plantações de grãos, é impossível a conciliação da nossa agricultura tradicional com reprodução das espécies vegetais e animais da mesma maneira que sempre foi, ou seja, não podemos explorar estas espécies de maneira sustentável. Essa escassez de recursos naturais, que é agravada pelo crescimento demográfico,  afetou ate a frequência com que diversos rituais são realizados .

Para reverter este quadro, a Associação Warã propõe, desde 2008, o projeto Marãnã Bödödi que defende a revisão da demarcação das atuais terras indígenas criando interligações ou corredores entre elas para promover a livre circulação dos xavantes e dos animais e plantas.

Associação Xavante Warã

Barra do Garças – MT, agosto de 2015

Enviado para Combate Racismo Ambiental por Lara Schneider.

Destaque: Indígenas Xavante. Foto: Marlene Bergamo, Folhapress, utilizada na matéria mencionada.

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