A ousadia da mulher guerreira: a reflexão de Maria do Espírito Santo, por Felipe Milanez

Um texto inédito da agricultora que foi covardemente assassinada numa emboscada pensa o papel das mulheres camponesas

Por Felipe Milanez, Carta Capital

Maria do Espírito Santo da Silva e José Cláudio Ribeiro da Silva se autoidentificavam como ambientalistas populares, agricultores extrativistas, castanheira e castanheiro, cabocla e caboclo, trabalhadora e trabalhador rural, educanda popular e assentada e assentado.

Viviam no Projeto de Assentamento Agroextrativista Praialta Piranheira, em Nova Ipixuna, sudeste do Estado do Pará, localizado às margens do lago da usina de Tucuruí, no rio Tocantins. Foram assassinados na manhã do dia 24 de maio de 2011.

Dois pistoleiros alvejaram as vítimas com tiros de espingarda em uma emboscada ao lado de uma ponte em más condições dentro do assentamento, na estrada em direção à cidade de Nova Ipixuna, a oito quilômetros da casa onde viviam.

Foi uma morte brutal e covarde, sem chances de defesa, por “motivo torpe”, planejada, feita por encomenda em uma “empreitada criminosa” e com requintes de crueldade – a orelha direita de José Cláudio foi cortada, enquanto ele ainda estava vivo, como prova do crime. O casal denunciava aos órgãos públicos, nos últimos dez anos, crimes ambientais e grilagem de terras no PAE.

Maria sucedeu a José Cláudio na presidência da associação dos pequenos agricultores agroextrativistas, a APAEP, e liderava a luta das mulheres no PAE, sendo a fundadora do GTAE: Grupo das Mulheres Trabalhadoras Agroextrativistas.

Em um raro texto sem data e nunca publicado, que consta a partir das folhas 71 dos autos do processo n. 0005851-94.2001.8140028, da comarca de Marabá, Maria escreveu uma autorreflexão sobre o papel das mulheres camponesas na luta pela terra.

Na tese de doutoramento em sociologia que apresentei recentemente na Universidade de Coimbra, proponho uma longa interpretação sobre o significado de “ousadia” para Maria do Espírito Santo. É este texto inédito que, após transcrevê-lo para o trabalho acadêmico, publico nessa coluna em homenagem a luta de Maria e das mulheres camponesas.

Sua irmã, Laisa do Espírito Santo, define a luta de Maria como a “coragem feminina”. Segundo Laisa, este texto autorreflexivo foi escrito para inspirar as mulheres nas lutas emancipatórias. É por isso que a pedido de Laisa, publico, pela primeira vez, este texto de Maria.

Maria escreve sobre si na terceira pessoa, a quem trata por “essa mulher”. Um texto forte, muito especial, muito inspirador diante do avanço reacionário contra as mulheres. Laisa que continua a viver no PAE e a liderar o GTAE, está ameaçada de morte pelo mesmo fazendeiro que mandou matar sua irmã: José Rodrigues Moreira.

Ele foi solto após ser absolvido em julgamento no dia 4 de abril de 2013. O julgamento anulado no ano seguinte e sua prisão determinada pelo Tribunal de Justiça do Pará — ele está foragido.

Debaixo da lona preta: o começo da história de lutas

Por Maria do Espírito Santo da Silva

Ao longo da história de ocupação da Amazônia, eram os homens que estavam à frente dos embates, para conseguirem uma parcela de terra para criar seus filhos e de certa forma tentar viver em melhores condições de vida.

Esta tarefa de luta era só os homens, as mulheres ficavam à margem dessa luta pois se dizia que mulher tinha que cuidar da casa e dos filhos. Entendia-se que só os homens pudessem lutar para suas conquistas.

Compreende-se que essa concepções é dos tempos remotos, os homens eram considerados como símbolo de coragem e resistência, e ainda é até os dias atuais. Naquele período também se falava em organização dos trabalhadores para a conquista da terra, ou seja os trabalhadores não tinham uma organização instituída, os sindicatos que existia eram pelego (não defendia a classe camponesa).

Ao passar dos anos as coisas foram mudando, para os povos que queriam uma de terra. Mas, de algumas décadas para cá, as mulheres vêm quebrando o paradigma (que mulher só era ficar cuidando de casa, marido e filhos), aos muitos dos anos as mulheres vem-se delineando na sociedade, sua coragem/ousadia em busca da tão esperada REFORMA AGRÁRIA.

Temos referências de alguma dessas mulheres: Margarida Alves, irmã Adelaide Molinari e irmã Dorothy as duas (religiosas) que foram assassinadas por lutar e defesa dos marginalizados pelo sistema capitalista.

No entanto, no final da década de 90, o papel da mulher vem tomando proporções satisfatórias a frente de cargos que anteriormente só era vistos só para homens.

Hoje a mulher está nos sindicatos em associações mesmo estando nesses espaços não deixaram de ser mãe, mulher que cuida da casa, ainda tira para estudar, a é que as mulheres fazer tanta atividade, sem perder a sua essência.

Partindo desse pressuposto é que vou falar de uma mulher, que sua história e luta também por uma REFORMA AGRÁRIA, digna para os povos do campo, e que, também está registrada no imaginário camponês, como também nos arquivos de ONGs, que vem acompanhando sua inserção no movimento popular.

Sua história começa assim: no dia cinco de maio do ano dois mil e um (05/05/2001), período no qual a mesma estava participando de uma grande mobilização de trabalhadoras e trabalhadores (acampamento, no espaço conhecido como agropólis do INCRA-SR-27, Marabá-PA, ela conta que estava ali porque seu companheiro era o coordenador da associação APAEP do PAE PRAIA ALTA PIRANHEIRA, e ela como sendo sua companheira não poderia deixar de apoiar na luta. Mas não sabia o significado daquelas mobilizações.

O que ocorreu naquele período foi um marco na vida dessa mulher. Naquele período também estava se aproximando o final da gestão do seu companheiro da associação, então vários trabalhadores e trabalhadoras aproveitaram para discutir o nome do próximo representante da associação.

Conta essa mulher que foi uma grande surpresa que lhe chamaram e disseram: “discutimos um assunto e você não pode dizer não”. Ao receber a notícia que seu nome estava sendo colocado para representar a associação daquele assentamento tão jovem na época, a mesma confessa que ficou assustada, mas parecia que todos que ali estavam queriam que uma mulher assumisse a coordenação da associação.

Então, chegou o dia de uma decisão chamada eleição (8 de junho de 2001). Lá estava ela decidida, mesmo dizendo não entender nada, parecia confiante. As agricultoras e agricultores reafirmaram o apoio tendo um resultado que muitos esperavam. Daquele dia em diante começa uma nova fase na vida dessa mulher (que é conhecida por muitos como mulher guerreira).

Talvez por sua determinação, as pessoas acreditam que esta mulher assumiria “todas” as problemáticas existentes no PAE, lembrando que naquele período várias famílias estavam a espera de uma parcela de terra de cinco grandes áreas que estava na posse de grandes latifúndios no qual os mesmos já se encontravam com essas áreas antes da criação do PAE-PRAIA ALTA PIRANHEIRA.

E retirar aqueles fazendeiros foi um acordo firmado por todos os que estiveram na consolidação de criação do PAE.

Conta ela que se não fosse a força que o seu companheiro, jamais conseguiria fazer alguma coisa por várias razões. Ele dedicou todo seu tempo a levá-la em todos os lugares que fosse organizar todo e qualquer assunto que viessem discutir algo de positivo para aquelas famílias, que esperavam uma resposta do INCRA.

Ressaltando que antes de assumir a associação, participou de uma mobilização (organizada pelo seu companheiro que ainda estava a frente da associação), que seria ocupar uma das fazendas inicialmente citadas.

Esta mobilização ocorreu no dia 22 de maio do corrente de 2001. Antes de seguir rumo a fazenda, fizeram os acordos como seria a chegada. Chegaram na sede da fazenda por volta das quinze horas (15 horas), eram trinta homens e três mulheres (uma mulher era mulher de um dos acampados, a outra era a Mariquinha do CNS e essa mulher de que estou falando nesse artigo [Maria do Espírito Santo da Silva]). Escolher aquele horário foi uma estratégia… pegamos o inimigo de surpresa, procuramos um lado que pra chegar fosse mais difícil de ser enxergados.

Ocuparam a sede e o capataz não gostou nem um pouco. Fez algumas perguntas, que geralmente todos nessa condição costumam fazer, tipo: “com ordem de quem vocês estão aqui?” Foi um momento inesquecível. Logo que chegaram, os trabalhadores começaram a organizar o jantar fora da casa.

Demorou um pouco, o capataz muito aborrecido deixou a casa e chamou o presidente da associação, e falou que ia chamar seu patrão e a coisa não ia ser muito agradável. Após a saída do capataz, começa uma nova estratégia. Para aquele novo momento, o encaminhamento foi procurar um local para esperar o fazendeiro.

Já era noite, então foi acordado que sairiam quatro pessoas para ficar a espera. Então saíram dois casais, e um desses era ela [Maria] e o seu companheiro [José Cláudio] para ela não seria usar algum tipo de arma para esperar o fazendeiro.

Conta ela que foi a primeira vez que pegou numa arma. Mas afirma que se preciso usaria, pois acredita que seria mais justo, pois não estavam tomando terra de ninguém. Então ficaram de tocaia até as três horas da manhã, diante ao ouvir da mesma que se o fazendeiro tivesse vindo naquela noite de Nova Ipixuna, teria uma história que ainda não se tem registro, pois geralmente as vítimas são as lideranças populares.

Para ela [Maria] naquele momento estava renascendo em si a ousadia que estava adormecida.

Imagem: Maria durante um curso para mulheres camponesas (Acervo Pessoal)

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