A Constituição de 1988 sob ameaça, por Cândido Grzybowski

Cândido Grzybowski* – Ibase

O difícil momento vivido pela sociedade brasileira pode ser o terreno propício para que, na surdina, prosperem análises e propostas de verdadeira desconstrução da democracia duramente conquistada há 30 anos. Faltam acordos mínimos entre as principais forças políticas do país sobre o que e como fazer para enfrentar a crise imediata, tanto política como econômica. Aparentemente, aceita-se como condição indispensável a manutenção da institucionalidade democrática. Mas nunca aparecerem tantas ameaças a conquistas fundamentais em termos constitucionais como agora.

Algumas propostas prosperam no toma lá-dá-cá em que qualquer coisa é votada no Congresso Nacional, especialmente na Câmara, onde partidos pouco representam, atropelados pelos interesses corporativos e fundamentalistas da tríplice “bancada bbb” (boi+bíblia+bala), misturados aos interesses de defesa pessoal do presidente Eduardo Cunha. É assim que têm sido tratadas matérias de fundamental importância como a redução da maioridade penal, a flexibilização do desarmamento, o estatuto da família e dos direitos sexuais e reprodutivos, a questão da demarcação de terras indígenas, o novo código de mineração, só para lembrar as mais importantes. As medidas de ajuste, elas mesmas uma afronta a muitos direitos trabalhistas da maioria, acabam não sendo devidamente debatidas e avaliadas já que as prioridades da “bancada bbb” é outra. A própria laicidade do Estado e da democracia está sendo posta em questão no seio da instância maior da democracia representativa, o Congresso Nacional.

Não bastasse isso para a gente se preocupar, começam a se difundir análises e propostas na grande mídia, formuladas por economistas ortodoxos, ligados aos interesses econômico-financeiros de bancos e grandes conglomerados, no sentido de atribuir à “Constituição Cidadã de 1988”- como Ulysses Guimarães bem definiu – os problemas de desajuste fiscal que o orçamento federal apresenta de forma estrutural. As conquistas de direitos sociais com um viés universalizante – saúde, educação, previdência e seguridade social etc -, impondo gastos orçamentários obrigatórios, seriam as responsáveis pelo desajuste. Não estou me referindo ao notório déficit destas políticas públicas em termos de garantia pelo Estado de direitos a todas e todos. O absurdo da proposta alimentada pelas análises de tais economistas não vai no sentido de ver como enfrentar os direitos negados em saúde, educação e proteção social. Pelo contrário, suas análises e propostas veem estes investimentos orçamentários, definidos na Constituição de 1988, como meros gastos e causadores do déficit fiscal na execução orçamentária. São direitos fundamentais da cidadania que estão sendo ameaçados pela viseira mercantilista e financeira de tais economistas. Ou seja, o sentido profundo da democracia conquistada com a redemocratização corre o risco de ser engolido pela crise atual.

Nunca é demais lembrar as várias dimensões da democracia. A institucionalidade democrática, baseada no reconhecimento dos diversos como detentores de iguais direitos civis e políticos, se baseia na Constituição, nas leis e regulamentações daí derivadas, que forjam o Estado de Direito. No nosso caso, uma federação com divisão e autonomia de poderes: executivo, legislativo e judiciário. A democracia, por definição, é instituída e constituída pela cidadania participativa. Sempre é e será a cidadania a detentora última do poder em qualquer democracia que merece tal nome. Ela pode ser exercida pelo voto, elegendo representantes, por plebiscitos e referendos, pela participação ativa nas várias instâncias do poder e nas políticas, ou, ainda, de forma mais direta pela ação nas ruas e praças, por campanhas e pelo debate público, como formas legítimas de pressão cidadã.

Na essência da democracia estão princípios éticos fundantes de direitos instituintes e constituintes da cidadania: a liberdade, a igualdade, a diversidade, a solidariedade e a participação. Tais princípios e valores tornam a democracia um pacto de incerteza, um possível histórico, algo em movimento, disputa e transformação constante, como próprio de sua essência. Os princípios e valores éticos, definidos como direitos, sempre estão na base do que é a força da democracia, a disputa e, como corolário, o pacto entre os que disputam. A democracia é um processo, com avanços e recuos, mas sempre algo em construção.

Tendo tal quadro como referência, podemos até ver como legítimas as análises e propostas formuladas pelos economistas ortodoxos e adotadas por elites mais conservadoras, como adequadas a seus interesses. A democracia comporta e até supõe isto. Mas cabe aos que apostam na democracia mais substantiva, como método legítimo e não violento de transformação social e de conquista da justiça social, de se preparar para a luta e montar trincheiras cidadãs. Nossa questão não é de menos direitos, de flexibilização de conquistas, de menos democracia. Para enfrentar os grandes desafios da sociedade atual, como uma cidadania emergente e em processo de emancipação, nosso desafio é radicalizar a democracia.

A importância estratégica da democracia está no supor a equalização pela política da desigualdade social. Sabemos todos e todas que a nossa enorme desigualdade social, herança da nossa colonização, da escravidão e do capitalismo subordinado, somada à destruição ambiental de conquista e uso predatório da natureza, é a maior chaga disruptiva da própria convivência social entre nós como povo. Para enfrentá-la, lutamos pela democracia e pela Constituição de 1988. Conquistas históricas que nos deram uns 30 anos de avanços em várias frentes. Falta muito, sem dúvida! Mas voltar atrás é o pior caminho.

De forma nenhuma podemos permitir que direitos cidadãos conquistados na Constituição de 1988 sejam flexibilizados devido às dificuldades atuais. Por que os economistas – aqui a pergunta vale para quase todos eles – não discutem os ilegítimos direitos dos detentores da dívida pública, que só em juros consomem algo como 6% do PIB anual? Por que existe isenção tributária exatamente para os mais ricos? Por que nosso sistema de impostos é tão regressivo? Aí está a raiz principal da crise fiscal! Precisamos enfrentar a enorme concentração de riqueza no 1% no topo da pirâmide social. A crise fiscal tem origem estrutural nos e nas que se beneficiam dos enormes déficits de democratização que ainda temos, não de seu ainda tímido avanço.

Por trás das escaramuças da conjuntura, entre PT, PSDB e PMDB, entre tantos outros partidos que vem perdendo significado relevante, entre os pró-Dilma e pró-Cunha, no meio das escabrosas revelações de corrupções da Lava-Jato, como cidadania amante da democracia precisamos ficar atentos ao que se trama na surdina contra conquistas constitucionais.

*Sociólogo, diretor do Ibase

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