O coronel Ustra teve a finalização das funções de seu corpo físico. Contudo, a máquina de triturar corpos e produzir medo, em meio à democracia, permanece
Por Edson Teles*, em Carta Maior
Morreu o coronel Ustra, comandante por quatro anos do maior centro de torturas do Exército brasileiro durante a ditadura, o Doi-Codi da rua Tutoia em São Paulo.
No pensamento político inglês do século XVI se estabeleceu a teoria dos dois corpos do Rei. Além do corpo físico e biológico comum a qualquer outro ser humano, o rei possuía um corpo místico, que nunca morria, simbólico e jurídico, indicando as funções de poder do reinado. Se o corpo natural estava exposto à morte, às perversões e à impunidade, o outro corpo definia-se pelas estratégias políticas. Por isto vemos em alguns filmes de época a expressão “O Rei está morto. Viva o Rei!”, demonstrando que as estruturas políticas permanecem apesar da morte do corpo físico que executava aquelas atividades próprias às suas engrenagens.
O coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, responsável por tortura, assassinatos e desaparecimentos de corpos teve, recentemente, a finalização das funções de seu corpo físico. Contudo, a máquina de triturar corpos, produzir medo, implantar o terror, agora em meio à democracia, permanece. A tortura enquanto estratégia política de controle, disciplinarização, punição e ameaça mantém suas funções.
Ele “foi agredido com objeto de choque no pênis, bolsa escrotal, pescoço e perna. Ele também apresentava machucados feitos na região da costela e múltiplas lesões na parte esquerda da nádega e nas coxas”.
Não! Isto não é o relato sobre as torturas praticadas pela equipe do coronel Ustra. Esta narrativa de violência contra um corpo físico foi publicada no dia 21 de outubro de 2015, na mídia da grande imprensa. Afonso, a vítima, era acusada de roubar R$ 60,00 em um estabelecimento comercial. Abordado por uma viatura da Polícia Militar, ele passou horas submerso no mundo da máquina de triturar corpos. Sim! Aquela mesma que se mantém viva, apesar da morte do Rei.
Para as máquinas políticas os indivíduos pouco importam. Elas têm funções, estratégias e processos que ocorrem independentemente daqueles humanos que nela atuam. Estes, não passam de simples componentes do conjunto de peças da engrenagem da máquina.
Isto não quer dizer, de modo algum, que a responsabilização de indivíduos seja de pouca importância. O sistema punitivo, talvez tão arcaico e funcional quanto os dois corpos do Rei, se processa especialmente em torno do indivíduo, sendo o castigo sobre seu corpo o exemplo a ser ensinado para o restante do coletivo de corpos formadores de uma sociedade ou população.
A impunidade de Ustra e seus cúmplices e comparsas, bem como do sargento torturador da PM e outros que atuam nos presídios, delegacias, febens etc., corroboram a persistência da eficácia de máquinas as mais distintas.
Estas máquinas, suas técnicas e tecnologias de controle e docilização de nossos corpos, não são simples heranças da ditadura. No período em que os militares assumiram o papel de violadores da dignidade humana a institucionalização deste tipo de função atingiu um ponto alto.
Contudo, quando presenciamos atualmente o genocídio de pobres, negros, jovens por parte do Estado, seja por meio da tortura ou de armas de fogo, seja pela fome, miséria e impossibilidade de acesso a serviços de qualidade, configura-se a criação e atualização das máquinas políticas.
Não é mais um simples legado. Não é um engano no funcionamento das instituições. Não é uma falha processual das engrenagens. São estratégias políticas de controle social. E das mais perversas.
Se o Ustra sobrevive na tortura do presente e deixa suas marcas no corpo de Afonso, nós permaneceremos em luta para denunciar e desmontar estas máquinas.
–
*Professor de filosofia na Universidade Federal de São Paulo e ativista da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos da Ditadura.
Destaque: Imagem meramente ilustrativa, recolhida da internet e sem informações de autoria.