A incrível insônia do Sabiá-laranjeira

Por Sandro Von Matter, em Conexão Planeta

Existem mais de 300 espécies diferentes de Sabiás espalhadas pelo mundo. Poucos sabem, mas todas as espécies que vivem hoje na América do Sul são descendentes que imigraram da América do Norte há 20 milhões de anos.

O Sabiá-laranjeira (Turdus rufiventris) é a mais comum e a mais conhecida das espécies dessa ave que vive no Brasil, facilmente reconhecida pela cor laranja ou ferrugínea de sua barriga e pelo canto melodioso.

É uma das aves mais populares do país, tão popular que, em 1968, foi declarada como símbolo nacional para o Dia da Ave, comemorado anualmente em 5 de outubro.

Seu belo canto inspirou poetas como Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado, Tom Jobim, Luiz Gonzaga e Chico Buarque. Mas entre todas as homenagens, uma se destaca na memória popular, o poema Canção do Exílio onde o poeta Gonçalves Dias o imortalizou em seus famosos versos: “Minha terra tem palmeiras, onde canta o Sabiá”.

Apesar de toda sua popularidade, em 2013 ele foi alvo de uma das maiores polêmicas do mundo envolvendo uma ave. Inesperadamente, os Sabiás da cidade de São Paulo trocaram o dia pela noite e passaram a cantar por toda a madrugada. E seu canto, antes idolatrado em poemas, se tornou o centro de milhares de reclamações por parte dos paulistanos incomodados pela cantoria fora de hora.

Mas, antes de tudo, é preciso entender por que as aves cantam. Para elas, cantar é questão de sobrevivência. Como fazem outras espécies de aves canoras, os machos de Sabiás cantam basicamente para atrair as fêmeas ou para assustar outros machos.

Diversos estudos científicos demonstraram que as aves que cantam mais alto, mais rápido e com um repertório maior de notas são as que têm maiores chances tanto de manter territórios com abundância de alimento quanto de conquistar as melhores fêmeas e reproduzir.

No vídeo abaixo, observe um Sabiá-laranjeira em pleno centro da cidade de São Paulo. Em seguida, voltamos ao mistério sobre o canto dessa espécie nas madrugadas paulistanas.

Por que o Sabiá-laranjeira resolveu cantar de madrugada?

Para investigar este fenômeno, que aconteceu na cidade de São Paulo, criei o projeto a Hora do Sabiá. Como o próprio nome sugere, seu objetivo é identificar os horários em que os Sabiás cantam por todo o país. Mas, diferente de outros estudos científicos, este é um projeto colaborativo, do qual qualquer pessoa pode participar ativamente.

Desde 2013, então, todos os anos o projeto conta com a participação de milhares de pessoas e se tornou o maior projeto de monitoramento colaborativo do país, além do primeiro projeto de ciência cidadã genuinamente brasileiro e direcionado ao estudo de uma espécie.

Para quem não sabe, ciência cidadã é o nome dado aos projetos científicos nos quais o cientista conta com o apoio de cidadãos para analisar, quantificar e registrar os fenômenos da natureza.

Graças à participação de centenas de voluntários de diversas cidades do estado de São Paulo, que respondem a duas simples perguntas – a que horas os Sabiás começam a cantar? E quando param? -, foi possível desvendar os mistérios por trás da mudança drástica de comportamento dessas aves, que alterou o horário em que se ouvia habitualmente seu canto.

Surpreendentemente, os resultados demonstraram que as aves da capital paulistana começam a cantar em média 5 horas antes dos seus parentes do interior. Além disso, os Sabiás do interior cantam – pela última vez no dia -, em média, quatro horas antes dos da capital.

Então, se a grande maioria das aves que mora em cidades pequenas não canta de madrugada, fica evidente que esta não é uma característica comum da espécie, mas, sim, um comportamento exclusivo de aves que habitam grandes cidades como São Paulo.

Mas ainda faltava responder a algumas perguntas: o que é que São Paulo tem que cidades como Itu, Itapetininga e Embu das Artes não têm? O que poderia estar influenciando as aves a iniciar seu canto às 3 horas da madrugada?

A resposta é simples: o trânsito ou, melhor dizendo, o barulho provocado pelos carros.

Com base nos dados da CET – Companhia de Engenharia Tráfego, foi possível comparar regiões e até ruas da cidade com alto índice de fluxo de veículos e, consequente, maior poluição sonora, a regiões com baixo índice e, correlacionar estes dados com a alteração no horário do canto das aves.

Os resultados foram claros e demonstraram que os Sabiás que habitam regiões da cidade altamente impactadas pela poluição sonora, se adaptaram ao barulho excessivo, deslocando seus horários de canto para o meio da madrugada. Isto porque é somente no silêncio da madrugada de São Paulo que os Sabiás encontram as condições ideais para se comunicar, ouvir e ser ouvido por outros Sabiás.

Agora você já sabe: se o canto dos seus vizinhos emplumados está tirando o sono, o maior culpado está logo ali estacionado na sua garagem ou na frente da sua casa.

Então, que tal deixar o carro ou a moto em casa ao menos uma vez por semana e optar por um modo de transporte alternativo? Os Sabiás de São Paulo agradecem.

Você gostaria de participar do projeto a Hora do Sabiá, ajudar a monitorar as aves da sua rua e contribuir para a conservação dos Sabiás? Basta clicar aqui e acessar o formulário do projeto. Conte a que horas os Sabiás cantam aí na sua janela! Além de contribuir para a preservação dessa espécie, você recebe certificado especial de participação no projeto.

Foto e vídeo: Sandro Von Matter*

*Biólogo e fotógrafo de natureza, estudou o topo das florestas tropicais e a ecologia de ecossistemas, especializando-se na interação entre animais e plantas. Hoje, à frente do Instituto Passarinhar, trabalha com conservação e restauração ecológica de áreas verdes, especialmente em centros urbanos.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Íris Morais Araújo.

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