Sem controle, alimentos circulam com agrotóxico irregular no país

Anvisa encontrou problemas em 31% dos produtos analisados por amostragem em SP em 2014. Maior entreposto da América Latina, Ceagesp tem um terço da produção nacional, mas apenas duas análises de bananas

Por Lucas Ferraz e Eduardo Geraque, de São Paulo, na Folha

É quase certo que a fruta, o legume e a verdura que chegam atualmente à sua mesa não tenham passado por nenhum controle rígido dos níveis de agrotóxicos. Documentos obtidos pela Folha mostram que a fiscalização, quando é feita, atinge somente uma fração pequena dos produtos e reprova até um terço deles.

Por exemplo: análise por amostragem da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) em alimentos típicos da cesta básica que circularam no Estado de São Paulo em 2014 mostrou que 31% tinham agrotóxicos proibidos ou em quantidade acima da permitida para os produtos.

O resultado dessa análise revela falhas na cadeia de controle da qualidade dos hortifrutigranjeiros produzidos e comercializados dentro do território nacional.

Um espelho desse quadro é a Ceagesp (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais), em São Paulo.

Por esse que é o maior armazém comercial da América Latina passam cerca de 30% de toda a produção nacional de alimentos atualmente.

Durante todo o ano passado, segundo informa documento do Ministério da Agricultura, só duas amostras de bananas foram coletadas ali para monitoramento.

“Não há controle, nunca vi nada. E trabalho aqui há 20 anos”, afirma o feirante Cláudio de Jesus, 39, dono de uma banca de legumes na feira que funciona semanalmente dentro da Ceagesp, na zona oeste da capital paulista.

Esse depósito gigante distribui produtos para supermercados e feiras da capital, além de dezenas de cidades do interior e outros Estados.

“É lamentável essa falta de controle”, afirma a dona de casa Adriana Lima, 29, que faz compras na Ceagesp há quatro anos.

SAÚDE

Potência na produção de alimentos, o Brasil é, por isso, um dos maiores consumidores de agrotóxicos do planeta. Entre as substâncias usadas no país estão algumas potencialmente cancerígenas, parte delas banidas da União Europeia e de países como China e Índia.

Os riscos à saúde vão de irritação na pele e nos olhos a dificuldades respiratórias, malformações congênitas, alterações no sistema hormonal e imunológico e câncer.

Para minimizar os efeitos, lavar bem os alimentos ajuda, mas não elimina todos os resquícios de agrotóxicos.

“É um risco inaceitável. Os gargalos não são acidentais, as autoridades fazem vista grossa”, diz o defensor público Marcelo Novaes, que coletou todas essas informações oficiais para, inicialmente, estudar a situação em Santo André, na Grande São Paulo.

Suas conclusões serão apresentadas nesta semana.

A responsabilidade pelos agrotóxicos é de três órgãos federais: além da Anvisa e da Agricultura, o Ministério do Meio Ambiente também tem atribuição por sua área.

O trabalho de cada órgão, contudo, costuma dar em resultados contrastantes.

As 48 amostras analisadas pelo Ministério da Agricultura em São Paulo em 2014, por exemplo, incluindo as duas de bananas na Ceagesp, foram consideradas satisfatórias.

No mesmo período, a Anvisa detectou 31% de desconformidade nos produtos analisados em supermercados da capital e da Grande SP –muitos, provavelmente, haviam passado antes pela Ceagesp.

Análise de produtos banidos no exterior se arrasta há 7 anos

Reavaliação de agrotóxicos iniciada em 2008 na Anvisa ainda está sendo feita; cinco substâncias foram vetadas. Em 2014, 1 de cada 5 produtos à espera de registro no país estava prestes a ser banido da União Europeia

Por Lucas Ferraz e Eduardo Geraque, de São Paulo, na Folha

Enquanto nos gabinetes de Brasília decisões sobre o controle dos agrotóxicos são postergadas, ingredientes químicos proibidos no exterior são pulverizados sobre os vegetais nas lavouras do país.

Desde 2008, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) abriu 14 processos de reavaliação toxicológica de ingredientes de agrotóxicos. A lista é de produtos que oferecem riscos à saúde, segundo os estudos.

Entre as possíveis consequências, há itens como “carcinogênico” (pode causar câncer) e “suspeita de desregulação endócrina”.

Passados sete anos, sete dos 14 processos de reavaliação ainda não terminaram.

Cinco foram concluídos com a proibição dos produtos. Dois, com restrição de uso.

Nas amostras pesquisadas no ano passado em São Paulo, a Anvisa detectou substâncias em processo de banimento em alimentos como alface, uva, tomate, morango, cenoura, pepino e beterraba.

“Quando falamos em agrotóxico, falamos em veneno. O descontrole deles causa prejuízo para a saúde”, diz Luiz Claudio Meirelles, pesquisador da Fiocruz.

ISENÇÃO DE IMPOSTO

Para críticos da atuação governamental no setor, as políticas públicas adotadas atualmente, além de desconexas, acabam estimulando a produção e o consumo de agrotóxicos nocivos à saúde e ao ambiente.

Pelas leis vigentes, há isenção de IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) para os agrotóxicos e redução de 60% na cobrança de ICMS. A importação e a venda interna das substâncias também são isentas de PIS/Pasep e Cofins.

Por outro lado, os produtores de orgânicos não contam com esse incentivo fiscal.

FUTURO

“Nos últimos 15 anos, a importação de agrotóxicos subiu por volta de 1.000%. O Brasil é atualmente o maior importador mundial”, afirma Victor Pelaez, professor do Departamento de Economia da UFPR (Universidade Federal do Paraná).

Ele é um dos autores do artigo “A (des)coordenação de políticas para a indústria de agrotóxicos no Brasil”.

O estudo mostra que, de 1.500 produtos aguardando registro da Anvisa no ano passado, 20% tinham ingredientes prestes a serem banidos pela União Europeia.

Para ele, o resultado traz, além de um alerta sanitário, a ameaça de um risco econômico para o país.

“Produtos brasileiros, com restos de agrotóxicos proibidos, terão dificuldades de entrar na Europa”, afirma o estudioso.

SP não aplica nenhuma multa desde 2002

Segundo órgãos que fazem o controle do agrotóxico no Brasil, todos os programas existentes são de caráter informativo, para orientação.

Por Lucas Ferraz e Eduardo Geraque, de São Paulo, na Folha

O Estado de São Paulo, fiando-se na legislação em vigor, não aplica nenhuma multa desde 2002, mesmo a quem é reincidente nas infrações relacionadas a esses produtos.

“A fiscalização é infrutífera e aleatória. É quase uma ficção”, afirmou à Folha o engenheiro agrônomo Marco Antônio de Moraes, que atua na Coordenadoria de Defesa Agropecuária de SP há 23 anos.

Segundo a Secretaria de Agricultura do Estado, uma minuta de projeto de lei, que ainda não tramita no Legislativo, permitirá a aplicação de multas, caso um dia seja aprovada.

A pasta ressaltou que denuncia os infratores ao Ministério Público.

Para a Anvisa, as análises que resultam em multa deveriam ser feitas em programas de Estados e municípios, e o rito “implica em procedimentos que oneram a rotina dos já sobrecarregados laboratórios”.

O Instituto Adolfo Lutz, do Estado de São Paulo, embora citado pela Anvisa, não tem capacidade laboratorial para analisar resíduos de agrotóxicos.

Em ofício à Defensoria Pública, o diretor-geral do instituto, Helio Caiaffa, diz que isso deve começar a acontecer somente a partir do ano que vem.

Ceagesp afirma que análise cabe a ministério; Anvisa diz cumprir lei

Agência Nacional de Vigilância Sanitária declara que atingiu meta ao analisar as 25 culturas mais consumidas no país

Por Lucas Ferraz e Eduardo Geraque, de São Paulo, na Folha

A responsabilidade pelo controle dos níveis de agrotóxico no país é federal, mas a atividade é compartilhada entre municípios e Estados.

Em ofício encaminhado à Defensoria Pública do Estado de São Paulo, a Ceagesp reconhece que, desde 2009, não realiza monitoramento nos produtos que comercializa, uma média mensal de 283 mil toneladas.

Naquele ano, o órgão assinou convênio com o Ministério da Agricultura, que desde então passou a ser responsável pelo controle.

Antes das duas amostras de banana analisadas no ano passado, o último controle na Ceagesp havia sido feito em 2012, quando foram coletadas dez amostras de quatro culturas (batata, laranja, morango e pimentão).

Segundo o ministério, a prática foi alterada para “garantir maior rastreabilidade e abrangência”, com o monitoramento sendo feito diretamente nos produtores ou no porto de Santos, antes de os alimentos serem exportados.

ATÉ O FIM DO ANO

A Anvisa, que não publicou ainda relatórios sobre as análises feitas em 2013 e 2014, disse que fará a divulgação dos resultados até o fim do ano. Os números mais recentes disponibilizados pela agência são de 2012.

Ao justificar o tempo entre as coletas e a divulgação dos resultados, a Anvisa informa que, em alguns casos, o prazo da publicação de dados nos Estados Unidos, por exemplo, é ainda maior.

A agência afirma que está encerrando os processos de reavaliação de sete agrotóxicos, que começou em 2008, mas não estipula uma data para que isso ocorra. Outros produtos terão que ser analisados também, em decorrência de decisões judiciais.

Sobre a quantidade de amostras que analisa anualmente, a Anvisa afirma que a legislação “não especifica o quantitativo de amostras a serem monitoradas”.

Ainda assim, a agência disse ter monitorado no ano passado os 25 principais alimentos de origem vegetal que compõem a dieta do brasileiro. Em 15 anos, ressalta, foram cerca de 30 mil amostras.

Sobre as diferenças de metodologia da Anvisa e do Ministério da Agricultura, o órgão sanitário informa que são programas com “focos diferentes e complementares”.

A Anvisa colhe amostras nos locais onde a população geralmente adquire os alimentos. Já o ministério atua em propriedades rurais, estabelecimentos comerciais e centrais de abastecimento.

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