Após PM-SP tentar intervir em projeto escolar, professores e alunos são alvo de perseguição

Polícia Militar divulgou no Facebook trabalho de escola estadual de Sorocaba (SP) com os nomes completos de duas menores de idade.  Professor teve celular e computador rackeados

Por Caroline Oliveira, especial para a Ponte

Há exatos quarenta anos, em 1975, Michel Foucault saía de sua passagem pelo Rio de Janeiro para lecionar durante seis meses na Universidade de São Paulo (USP). Porém, quando chegou na capital paulista, os universitários pediram ao filósofo que os ajudasse a divulgar os horrores cometidos pelos agentes do Estado durante a Ditadura Militar Brasileira. Foucault suspendeu as aulas e lançou uma nota internacional relatando o real cenário político e social brasileiro.

Depois de quatro décadas, Foucault continua vivo como na década de 1970. No mês de setembro, na cidade de Sorocaba, interior de São Paulo, o professor de filosofia Valdir Volpato, da Escola Estadual Aggeo Pereira do Amaral, realizou pela segunda vez um trabalho escolar comum, cuja bibliografia se baseia no livro foucaultiano Vigiar e Punir, com os alunos do segundo ano do Ensino Médio. Segundo uma das autoras do trabalho, de 17 anos, que relacionou a obra de Foucault com a estrutura do PCC (Primeiro Comando da Capital) dentro do sistema carcerário, o professor propôs a reflexão contida no livro, enquanto a escolha dos temas coube aos alunos.

Além do recorte escolhido pelas adolescentes, duas alunas resolveram pautar a violência policial com base em pesquisas feitas na internet e jornais, usando como imagem ilustrativa a charge feita pelo chargista e ativista político Carlos Latuff em 2013, na qual um policial da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), representado por uma caveira, segura uma caixa com um homem morto e com a seguinte frase “por relevantes serviços prestados”.

Em seu Facebook oficial, a PM-SP (Polícia Militar do Estado de São Paulo) expôs a foto do trabalho, contendo o nome das duas menores de idade e do orientador da atividade. “Não queremos acreditar que, em pleno século 21, profissionais da área de ensino posicionem-se de maneira discriminatória, propagando e incutindo o discurso de ódio em desfavor de profissionais da segurança, estimulando seus alunos a agirem sem embasamento e direcionando-os de acordo com ideologias anacrônicas, que em nada contribuem para a melhoria da sociedade”, afirmou a corporação.

Em entrevista à Ponte Jornalismo, a mãe de uma das adolescentes condenou a exposição de sua filha nas redes sociais. Ela disse que a situação saiu totalmente do controle depois da imagem ter sido divulgada na internet. “Ninguém chegou para eles [os alunos] e falaram o que a Polícia Militar faz ou deixa de fazer. Os alunos não inventaram e nem aumentaram. Simplesmente essa é a realidade que nós estamos vivendo hoje”, afirmou referindo-se às violações de direitos e abusos cometidos por policias militares.

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Ato do dia 28 em Sorocaba (Foto: Apeoesp)

A Comissão de Direitos Humanos da OAB Sorocaba criticou o acontecimento desde que teve ciência do caso. Hugo Batalha, presidente da comissão, afirmou à Ponte Jornalismo que fez uma representação na Corregedoria da PM  “cobrando apuração e indicação da autoria, do comando, de onde partiu a ordem [para a tenente e os dois cabos irem até a escola], e das pessoas envolvidas”. Além disso, também foi feito um requerimento pedindo instauração de inquérito, para apurar “especificamente o abuso de autoridade e do Estatuto da Criança e do Adolescente no que se refere à exposição das adolescentes que fizeram o trabalho na internet”. Segundo Batalha, foi criada, junto com a Apeoesp Sorocaba “uma rede para dar visibilidade para a questão tanto no intuito de repelir a ação da Polícia, quanto para dar proteção ao professor e aos estudantes, de modo que não sofressem mais com arbitrariedades e ameaças.”

De acordo com ele, “a nota divulgada pela Polícia Militar tenta desconstruir tudo o que foi dito e feito, como se nada tivesse acontecido e que tanto a Secretaria de Segurança Pública, quanto a Secretaria de Educação estão juntas, o que não é verdade. Tudo foi documentado, a nota foi publicada, esta chama o professor de “infeliz”. No site da Polícia Militar, permitiu-se a difamação e a calúnia contra a comunidade escolar. E isso vamos levar até o fim”.

Durante ato público realizado dia 28 de setembro para protestar contra a arbitrariedade, a coordenadora da Subsede da Apeoesp Sorocaba, Magda Souza, afirmou que o professor Valdir sentiu na pele o que é Vigiar e Punir, o que é o Sistema de Segurança Pública no Brasil. “Pensar não é crime, os alunos não são criminosos para estarem lá na página do Comando da Policia Militar, são crianças. É um trabalho escolar e que, portanto, estava circunscrito aos muros da escola, a Polícia foi lá, fotografou, colocou na rede social. Nenhuma instituição tem o direito de entrar numa escola com o poder da arma e dizer o que pode ou não”, disse.

A reflexão sobre a obra de Foucault incomodou tanto a PM que, professores e alunos passaram a sofrer ameaças e tiveram os cartazes circulando em páginas do Facebook, como “Sargento Alexandre” e “Admiradores da Rota”. O professor Valdir disse também que depois de toda a repercussão que o caso teve na mídia, “tive minha vida virada de ponta cabeça. Tive meu Facebook pessoal, meu celular, meu computador rackeados. Uma censura que eu havia aprendido com as minhas professoras de história. Eu não sou criminoso, não cometi crime nenhum, apenas dei aula”.

No ato do dia 28, os alunos e professores contaram com o apoio presencial do chargista Carlos Latuff, que comparou a postura dos alunos e professor Valdir com a atitude simples de Rosa Parks, na década de 1950. Negra e estadunidense, ela sentou num banco de ônibus que era destinado somente aos brancos durante a segregação racial dos Estados Unidos, o que lhe causou ameaças. Dirigindo-se aos alunos, disse “Vocês fizeram o simples: um trabalho de escola. Vocês tocaram numa ferida gigantesca”. “Os policiais foram até a escola para dizer o que o professor pode ou não ensinar. É porque a gente realmente não vive numa democracia. Esse professor não fez nada demais, ele citou Foucault! O arroz com feijão. Vão fazer o quê? Vão queimar livros? ”, questionou, em conversa com a Ponte.

Ato do dia 28 em Sorocaba (Foto: Apeoesp)
Ato do dia 28 em Sorocaba (Foto: Apeoesp)

Os trabalhos, feitos em formato de banners, ficaram expostos durante três semanas nas dependências da Escola Aggeo. Porém, como disse o professor Valdir durante o ato público “o giz foi mais pesado que o cacetete”. No dia 16 de setembro, uma tenente acompanhada de dois cabos da PM, por meio de uma ordem institucional, foram até a escola para repreender o professor de filosofia e pedir a retirada das atividades, numa tentativa de censura explícita de liberdade de cátedra e de expressão.

A  Polícia Militar afirmou que o tenente coronel Marcos Antônio Ramos recebeu na sede do 7º Batalhão de Polícia Militar do Interior, Sorocaba, Marco Aurélio Bugni, dirigente regional de Ensino de Sorocaba, e Regina Isabel Viana, diretora da escola estadual Professor Aggêo Pereira do Amaral “a fim de estreitar o relacionamento da escola com a Polícia Militar. O encontro serviu para por término ao episódio decorrente da divulgação nas redes sociais de um cartaz que foi objeto de um trabalho dos alunos da referida escola, envolvendo a Polícia Militar do Estado de São Paulo.” A postagem que expôs as menores foi excluída.

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