Para compreender Ñande Ru Marangatu, por Jorge Eremites de Oliveira

Em 2007, na condição de perito da Justiça Federal, participei da elaboração de um laudo judicial de natureza antropológica e histórica sobre a Terra Indígena Ñande Ru Marangatu, localizada no distrito de Campestre, município sul-mato-grossense de Antônio João, fronteira do Brasil com o Paraguai. Posteriormente, em 2009, o estudo foi publicado sob forma de livro e disponibilizado na Internet (AQUI).

À luz do Art. 231 da Constituição Federal de 1988, a área periciada é de ocupação tradicional Kaiowá; oficialmente possui 9.317,2160 hectares, conforme consta no resumo do relatório circunstanciado de identificação e delimitação elaborado pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio) e publicado no Diário Oficial da União em 2001. Em 2005 foi homologada pela Presidência da República, mas no mesmo ano o decreto foi suspenso por uma liminar concedida pelo então ministro Nelson Jobim, do STF (Supremo Tribunal Federal). Desde então a regularização da área depende de decisão da Suprema Corte e a demora ocasiona prejuízos às partes envolvidas no litígio, sobremaneira aos Kaiowá que ali vivem em situação de vulnerabilidade social.

Anteriormente à perícia não conhecia a comunidade de Ñande Ru Marangatu, cujo nome em guarani significa algo como “Nosso Pai Divino” e faz alusão a um morro localizado no interior da terra indígena, percebido pelos Kaiowá como lugar sagrado e epicentro religioso de um “tekohá guasu” ou grande território tradicional. Sua história mais recente, ao menos desde os anos 1940 até o tempo presente, está marcada por várias formas de violência e tentativas de dominação por parte de setores das elites regionais e do Estado Brasileiro. Exemplo disso é o assassinato de algumas de suas lideranças, como ocorreu com Nelson Franco, em 1952, Marçal de Souza, em 1983, e, mais recentemente, Simeão Fernandes Vilhalba, em 29 de agosto de 2015. No município de Antônio João, assim como em grande parte de Mato Grosso do Sul, os indígenas geralmente são percebidos como não-humanos, chamados pejorativamente de “bugres” e apontados como entrave ao agronegócio e, consequentemente, à ideia de progresso que é hegemônica no estado.

Durante os trabalhos periciais foram aplicados vários procedimentos científicos reconhecidos nos campos da Antropologia e da História, como, por exemplo, o método etnográfico e o da história oral. Também foi mantida interlocução com indígenas, fazendeiros e trabalhadores rurais não-índios, dentre outras pessoas envolvidas nos conflitos pela posse da terra. Foi ainda realizado o levantamento e a análise de publicações sobre a história da região, bem como de documentos contidos no processo judicial e em arquivos do antigo SPI (Serviço de Proteção aos Índios), FUNAI, cartório de serviço notarial e de registro civil de Antônio João, câmara municipal e de um pequeno comerciante da cidade. Além disso, foi feita a vistoria de vários lugares onde havia evidências arqueológicas da presença indígena na região.

Em linhas gerais, o laudo atesta que os Kaiowá ocupam tradicionalmente a Terra Indígena Ñande Ru Marangatu e outras áreas de seu entorno desde tempos anteriores à guerra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança (1864-1870). Estão ali, portanto, desde antes da chegada dos atuais proprietários de fazendas e seus predecessores, sendo que alguns dos ruralistas mais antigos vieram de Minas Gerais nas décadas de 1940 e 1950, obtiveram títulos de propriedade em Cuiabá e tiveram envolvimento na expulsão de indígenas e posseiros não-índios que ali viviam. Esta situação foi denunciada na época por Quirino Ernesto Zanchet a autoridades governamentais do antigo Mato Grosso.

Muitas famílias Kaiowá também afirmam que foram vítimas de processo de esbulho ocorrido no período, isto é, que nunca abandonaram a terra por livre e espontânea vontade. Os indígenas mais idosos e seus descendentes apontaram Milton Corrêa, Damico Damiano Corrêa, Lazinho Corrêa e Pio Silva como pessoas que promoveram esbulho contra a comunidade. Grande parte desses eventos está presente na memória social dos indígenas e é corroborada, inclusive, por fontes escritas, como um ofício que o ex-vereador e ex-deputado estadual Agapito de Paula Boeira encaminhou em 1952 à direção do SPI. Somam-se a isso os relatórios e estudos produzidos a partir da década de 1970 por antropólogos e historiadores, como Lília Valle e Antonio Brand.

Em suma, a cadeia dominial das fazendas situadas no interior da Terra Indígena Ñande Ru Marangatu possui um vício de origem, haja vista que o governo do antigo estado de Mato Grosso titulou territórios indígenas não regularizados a terceiros. Para isso não determinou a realização de qualquer levantamento sobre a situação das famílias Kaiowá ali estabelecidas, tampouco assegurou a reserva de alguma área para sua acomodação. Neste contexto, o órgão indigenista oficial foi amiúde omisso na defesa dos direitos da comunidade indígena. Portanto, revolver o impasse criado à regularização da área é um desafio atual para o Estado Brasileiro e à própria humanidade, inclusive no que diz respeito a reparar danos morais e materiais às partes envolvidas na disputa pela terra. Oxalá que isso ocorra de maneira justa e expedita, e sem mais derramamento do sangue de pessoas inocentes.

* Jorge Eremites de Oliveira é professor associado do Departamento de Antropologia e Arqueologia do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Pelotas.

Destaque: Execução da reintegração de posse contra os Guarani Kaiowá de Ñande ru Marangatu, concedida pelo STF em dezembro de 2005. Foto divulgada por Egon Heck.

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