Direitos Indígenas ameaçados no Brasil, por Gersem Baniwa*

Este documento traça breve análise crítica sobre o cenário atual dos direitos dos povos indígenas no Brasil, apresentando os principais problemas enfrentados por esses povos, apontando os desafios lançados ao Estado e à sociedade brasileira no sentido de a proteção do direito à terra que tradicionalmente ocupam, sua organização social, seus costumes, línguas, crenças e tradições, conforme estabelece expressamente Constituição Federal de 1988.

Passados 30 anos de redemocratização do país e de 27 anos da Constituição Federal de 1988 que consagrou os direitos fundamentais dos povos indígenas no reconhecimento às suas terras tradicionais, aos seus sistemas tradicionais de vida, social, econômica, educacional, lingüística, estes povos vivem na atualidade, desafios e pesadelos no âmbito de seus direitos. Desde 1988, foram duas décadas de otimismo com o processo gradativo de garantia dos direitos conquistados, com alguns avanços no âmbito territorial, cultural, educacional, econômico e político. As conquistas territoriais ocorreram principalmente na Amazônia.

Os povos indígenas, a partir da conquista de cidadania e capacidade civil, alcançaram avanços importantes que podem exemplificados por meio da construção de uma complexa rede de organizações indígenas, que na atualidade, exerce papel vital de guardiã sistemática dos direitos indígenas em todos os níveis locais, regionais e nacional. Outro dado importante refere-se aos quase 13 mil indígenas que alcançaram o ensino superior, dentre os quais, 28 advogados indígenas em exercício de suas profissões.

Mas, persistem velhos problemas e desafios no tocante ao respeito e garantia dos direitos conquistados. Nos últimos anos percebemos claramente o agravamento do desrespeito e da violação institucional dos direitos indígenas. Neste momento mais do que garantir e ampliar direitos trata-se de garantir a sobrevivência física e cultural dos povos indígenas, ameaçadas por uma onda sem precedente de anti-indigenismo por parte de elites econômicas e políticas ligadas às empresas do agronegócio e da mineração.

É notório o agravamento dos problemas e desafios enfrentados pelos povos indígenas no Brasil. O cenário atual aponta para uma forte tendência à negação ou criação de restrições para a efetivação dos direitos indígenas, sobretudo aqueles relacionados ao reconhecimento e à proteção de seus territórios, o que é essencial para a manutenção de sua organização social, seus costumes, suas crenças e culturas. Nesse aspecto, destaca-se o advento da Portaria no 303/2012 da Advocacia-Geral da União e a tramitação da Proposta de Emenda Constitucional – PEC n˚ 215. A Portaria 303/2012 produziu seus estragos, de forma maldosa, ao estender para fora da Terra Indígena Raposa Serra do Sol as condicionantes inventadas pelo Supremo Tribunal Federal.

A PEC n˚ 215, por sua vez, tem como proposta “acrescentar às competências exclusivas do Congresso Nacional a de aprovação da demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, bem como a ratificação das demarcações já homologadas”. O assunto ganhou evidência a partir da aprovação da PEC pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, em abril de 2012. O objetivo claro da proposta é dificultar ainda mais ou mesmo inviabilizar os processos administrativos de demarcação de terras indígenas no país. É uma tentativa brutal de negar o principal direito humano indígena de acesso ao território, como princípio primordial da vida, além de ferir frontalmente a Constituição Federal e o pacto moral e social construído em volta dela no processo constituinte.

Concomitante a essa ofensiva do Estado, que através de seus três poderes manifesta uma posição anti-indígena, explodiram graves conflitos por todo o país. No Mato Grosso do Sul, envolvendo a demarcação de terras indígenas dos Terena e dos Guarani-Kaiowá; na região de Guaíra, no oeste do Paraná, onde os Avá-Guarani se reuniram em 13 aldeias para reivindicar a dita demarcação de terras; no sul da Bahia, com a reocupação, pelos Tupinambá, do território que sempre ocuparam, mas que aguarda a lenta demarcação pelo Poder Público; na região de Altamira, no Pará, por conta da construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, onde o Estado ignorou a necessidade de realização de consulta prévia dos povos afetados, desrespeitando a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT. Existem vários outros exemplos recentes de violação dos direitos dos indígenas.

O atual cenário de ameaça aos direitos fundamentais dos povos indígenas evidencia que o Direito está em disputa, com ataques constantes à democracia e ao pluralismo, por meio de atos como a PEC 215/2000 que transfere a competência para normatizar sobre demarcação de terras indígenas (TI) para o Congresso Nacional; o PLP 227/2012 que ao definir o que é bem de relevante interesse da União tende a preservar os latifúndios, cidades, e, entre outros, empreendimentos econômicos em áreas indígenas, além de disciplinar o processo demarcatório; a PEC 237/2013 que permite que produtores rurais tenham posse sobre terras indígenas por meio de concessão, permitindo atividades como arrendamento; a PEC 38/1999 que retira do Poder Executivo a função de demarcação das terras indígenas; o PL 1610/1996 que trata da mineração em terra indígena, silenciando sobre a consulta prévia.

Os ataques ainda são sentidos por medidas como a Portaria no 303/2012 da Advocacia Geral da União que dispõe sobre “salvaguardas” institucionais às terras indígenas, em desacordo com a Convenção 169, bem como restringe ampliação de áreas e ainda determina revisão dos processos de áreas já regularizadas, tomando como referência as condicionantes definidas pelo STF no julgamento do processo da TI Raposa Serra do Sol – PET 3388; a Portaria Interministerial no 419/2011 que regula o processo de licenciamento ambiental, porém estabelece prazos irrisórios para o trabalho e manifestação da Funai, resultando na maior celeridade na liberação de licenças beneficiando principalmente grandes empreendimentos em terras indígenas, e, ainda, o Decreto Presidencial no 7957/2013 que regulamenta a atuação das forças armadas na proteção ambiental, autorizando, em consequência, a repressão militarizada afetando principalmente povos indígenas e tradicionais que se posicionam contra empreendimentos em suas terras.

Esses atos legislativos e administrativos violam direitos adquiridos e tendem a dificultar o processo de demarcação de terras indígenas, para favorecer sua exploração econômica e a implantação de megaprojetos (hidrelétricas, mineração e agronegócio). A lógica expressa dessas medidas está na contramão das conquistas de direitos indígenas no Brasil, desde 1988, e no âmbito internacional.

A esses ataques somam-se também as decisões judiciais que acirram conflitos ao conceder reintegração de posse a proprietários/as não-índios que são ocupantes de terras indígenas em processo de regularização, e entre outras, a recente investida contra o usufruto exclusivo das terras indígenas traduzidas nas “19 condicionantes” estabelecidas por ocasião do julgamento da Ação Popular – Petição no 3388/2012, que entre outros aspectos, afronta a livre determinação afirmada na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas de 2007 e à consulta prévia, livre e informada como declara a Convenção OIT/169.

Dados de 2014 do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), órgão ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) indicam um crescimento das violações aos direitos humanos indígenas, de maneira geral e, especificamente, dos casos de suicídios e de assassinatos. Os dados do CIMI revelam que em 2014 ocorreram 135 suicídios, sendo a maioria praticada por jovens. Considerando-se registros feitos entre 2000 e 2014, somente no estado de Mato Grosso do Sul, chega-se ao alarmante número de 707 suicídios de indígenas para uma população de pouco mais de 60.000 pessoas. Graves também são as ocorrências de assassinatos que em 2014 foram 138, sendo muitos destes praticados em função de conflitos fundiários, com intuito de coibir as lutas e amedrontar as lideranças indígenas. Os estados do Mato Grosso do Sul, do Amazonas e da Bahia lideram as estatísticas de assassinatos de indígenas (CIMI, 2015).

Igualmente preocupantes são as violências decorrentes da omissão do poder público, em especial, o descaso com a saúde, que impossibilita aos indígenas o acesso a recursos, procedimentos médicos, exames e medicamentos que poderiam lhes garantir melhores condições de vida. Contabilizaram-se 79 casos de desassistência em saúde, além de 21 mortes (CIMI, 2015). Dados oficiais indicam a chocante ocorrência de pelo menos 785 mortes de crianças de 0 a 5 anos. As situações mais alarmantes ocorreram em aldeias Xavante, com 116 mortes de crianças de 0 a 5 anos (141,64 mortes por mil nascidos vivos), em Altamira/PA (141,84 óbitos por mil nascidos vivos) e, entre os Yanomami, com 46 registros de mortes de crianças de 0 a 1 ano.

Gravíssimo é a situação dos povos indígenas submetidos a condições de confinamento. No Mato Grosso do Sul, a maioria da população – em torno de 40 mil pessoas – vive confinada em ínfimas reservas, sem assistência em saúde, educação, segurança, trabalho, espaços de lazer e de viver em territórios compatíveis com seus modos de vida e suas culturas. Os Guarani-Kaiowá sofrem intensamente os efeitos de um modelo de ocupação e de exploração de suas terras tradicionais pelo agronegócio, a partir de estratégias sistemáticas de expulsão e de confinamento da população indígena em espaços restritos. A insegurança dos povos neste estado, detentor dos maiores índices de violência e violações contra indígenas no país, se intensifica quando são deflagradas campanhas contra os direitos indígenas, que contam com ampla participação dos meios de comunicação e dos políticos. Essas campanhas têm apelo racista e o potencial de insuflar a população local contra as comunidades indígenas.

Há que se destacar também a realidade de comunidades indígenas submetidas à degradante condição de vida em acampamentos provisórios, onde não há segurança, não há saneamento, não há acesso a água, não há possibilidade de cultivo da terra e nem dos sentimentos de pertença territorial, como são os casos dos acampamentos situados no Rio Grande do Sul, dos Povos Kaingang e Guarani.

Assim, práticas institucionais e posturas de agentes políticos e outros agentes públicos que se fundamentam em uma visão de mundo que não respeita a diversidade e que afirma um único modo de vida cultural, político e econômico, não podem ser levadas à frente, já que inequivocamente ofendem a vontade constituinte originária, realizando uma etnocracia quase intransponível para a efetivação constitucional a partir do que enuncia o artigo 231, e violando um dos princípios reitores da Constituição que é assegurar a dignidade da pessoa humana e o pluralismo.

Os povos indígenas estão vivendo uma situação ultrajante de insegurança jurídica, sofrendo permanentemente com as ameaças de terem seus direitos suprimidos, e qualquer interpretação da Constituição que restrinja o alcance dos direitos fundamentais dos povos indígenas deverá ser recusada, pois, do contrário, se estará negando aos povos indígenas a possibilidade de sobreviverem física e culturalmente nos seus próprios termos.

Esses casos perpetuam a histórica violência contra os povos indígenas que vivem no território brasileiro. Longe de superar os desafios com que se defrontavam anos atrás, os indígenas têm que enfrentar novos obstáculos que são colocados em sua incessante marcha de resistência ao perverso processo de colonização que lhes segue sendo imposto, revelando a verdadeira impossibilidade de o capitalismo assimilar a diversidade sem mercantilizá-la.

* Gersem Baniwa é Doutor em Antropologia Social pela Universidade de Brasília. Atualmente é Professor Adjunto do Departamento de Educação Escolar Indígena (DEEI) da Faculdade de Educação (FACED) e Diretor de Políticas Afirmativas da Pró-Reitoria de Extensão (PROEXTI) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e coordenador do Fórum de Educação Indígena do Amazonas (FOREIA).

O artigo acima foi disponibilizado pela Plataforma Dhesca Brasil, da qual Gersem Baniwa é o primeiro Relator de Direitos Humanos e Povos Indígenas.

Referências bibliográficas:

CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Relatório Violência contra os povos indígenas: dados de 2014. Brasília, 2015.
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés; BERGOLD, Raul César (Orgs.). Os direitos dos povos indígenas no Brasil: desafios no século XXI. Curitiba: Letra da Lei, 2013.

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