Miçangas no Museu: o mundo se faz de contas, por José Ribamar Bessa Freire

“Aí está a miçanga que nós chamamos de samura. Está certo que é o branco que fabrica, mas quando chega na mão do índio ela vai se transformando. Então, na medida que a mulher vai trabalhando, enfiando a miçanga, ela já está enfiando o conhecimento dela dentro da miçanga” (João Tiriyó).

Em Taqui Pra Ti

Parece até que foi encomendado. O vento forte e a chuva de granizo que caiu nesta quarta-feira (19), no Rio de Janeiro, perfumou o Museu do Índio com cheiro de terra molhada durante a abertura da mega-exposição “No caminho da miçanga – um mundo que se faz de contas”. O Museu estava até o tucupi de gente. Tinha gente saindo pelo Cunha. Cerca de 500 pessoas se acotovelavam para ver os conhecimentos enfiados pelas mulheres indígenas dentro de 700 peças de rara beleza confeccionadas com miçangas coloridas, além de fotos, filmes, hipertextos e instalações multimídia.

Índios, antropólogos, museólogos, historiadores, linguistas, professores e estudantes percorreram, de olhos esbugalhados, os sete ambientes do espaço expositivo – Viagem, Mito, Encontro, Troca, Brilho, Ritual, Encanto e Mergulho. A exposição, que tem como curadora a antropóloga Els Lagrou, conta com a parceria da UNESCO e da UFRJ. Foram cinco anos de trabalheira de artistas indígenas de 24 etnias, de pesquisadores do Programa de Documentação de Línguas e Culturas Indígenas (PROGDOC) e da equipe do Museu do Índio. Mas a Exposição, enfim, foi inaugurada.

Mulheres indígenas

Na abertura, o diretor do Museu, José Carlos Levinho homenageou “as maiores detentoras do conhecimento sobre o manuseio das miçangas: as mulheres indígenas, exímias artesãs dessa arte complexa e fascinante, que com as mãos, as linhas, as contas e as cores tecem verdadeiras obras primas, registros fundamentais da história e cosmologia de seus povos”. Citou nominalmente cada uma das artistas Guarani, Ye’kuana, Marubo, Karajá, Krahô, Kayapó, Kaxinawá e Maxakali, que no final de semana mostram ao público técnicas usadas na confecção de objetos com miçanga.

A exposição, que contou na abertura com a presença do atual e do ex-presidente da Funai, João Pedro e Márcio Meira, é intercontinental. Ao lado das obras de arte elaboradas no Brasil estão outras confeccionadas por 18 povos da África, da Ásia e de diversos países da América, que permitem contar a trajetória histórica da miçanga e sua viagem pelo mundo.

Na América, ela chegou no Caribe, em 1492, trazida pela primeira vez por Cristovão Colombo e depois como carga obrigatória dos barcos que aqui aportavam. Os povos ameríndios, que já confeccionavam colares, pulseiras, cintos, peitorais, tangas, braçadeiras, braceletes, tipoias e cocares com sementes, dentes de animais, conchas, coquinhos, ossos, casco de tartaruga, ficaram tão encantados com as miçangas, que davam qualquer coisa por elas. Cristovão Colombo registra o fato em seu diário e chama os índios de otários e bestas, porque davam ouro em troca de vidro.

– Besta e otário era o Colombo, que não compreendeu que os valores são convencionais, que o ouro em si não é mais precioso do que o vidro em si, o valor do ouro no sistema de troca mercantilista europeu não pode ser universalizado – escreve Tzvetan Todorov, numa versão livre de trecho do seu livro “La Conquête de L´Amérique, la question de l’autre”. Comedida, mas igualmente esclarecedora, diz Els Lagrou: “O que para Colombo não passava de vidro, eram pérolas para os indíos. Apesar de fazerem suas própria contas, as de vidro eram novidades, preciosidades exóticas”.

Os Kaxinawá contam que as pessoas viajavam pela floresta em busca da árvore de miçanga, uma árvore grande parecida com a samaumeira, cheia de contas coloridas: vermelhas, azuis, amarelas e brancas. A exposição mostra que a miçanga, desde sua origem, está associada à viagem. “Fácil de carregar e sedutora pelo brilho, dureza e colorido, a miçanga se transforma rapidamente em matéria prima cobiçada para a arte de produzir enfeites a amarrar o corpo e enfeitar os artefatos rituais entre muitos povos do mundo, ela aponta para a conexão com mundos distantes, porém interconectados e traz para o interior forças que vêm de fora”.

Pacificando o branco

O colonizador que extraía o cacau da América e trazia o chocolate, fez isso com todas as matérias primas. Mas com a miçanga ocorreu o contrário. Quem visita a exposição é chamado a refletir sobre a inversão estética da relação entre o colonizador – que aqui é o fornecedor da matéria prima – e o colonizado – que passa a ser o encarregado de transformá-la em arte, em artefato, de agregar valor ao produto como dizem os economistas.

O deslubramento diante da beleza das peças, com uma iluminação que as valoriza e proporciona conforto visual ao visitante, é de tirar o fôlego, mas o efeito quase pirotécnico dos recursos expográficos, longe de ofuscar o pensamento, contribui para a reflexão. O visitante, além de encher os olhos com a beleza, inunda a cabeça com novas ideias, se faz perguntas e sai com uma visão mais precisa sobre as culturas que foram capazes de ver o Outro “não como um empecilho para a construção de pessoas ou grupos”, mas como elemento constitutivo do ser. A miçanga mostra que o Outro precisa ser incorporado e pacificado e não aniquilado e destruído.

É o que Els Lagrou denominou de “estética indígena de pacificação do branco”. O “purista” vê na miçanga um sinal de poluição estética, resultante da substituição da matéria-prima extraída do ambiente natural por materiais industrializados. A exposição nos mostra, pelo contrário, que “a própria concepção estética ameríndia situa no exterior a fonte de inspiração para o processo criativo”.

O texto de abertura nos chama a atenção para o papel central das miçangas nos mitos e nos ritos de diferentes grupos ameríndios, a miçanga funciona como se fosse uma língua, com um dicionário de contas, uma espécie de lingua de vidro que registra e faz circular conhecimentos, “tece caminhos pelo mundo e conta histórias de fascínio mútuo entre povos distintos, falando do comércio e da exploração, do encontro e desencontro de perspectivas entre viajantes e nativos”.

O que vem de fora

No “Mergulho” da última sala, as considerações finais:

– Você certamente se perguntou porque tantos povos diferentes são fascinados por essas continhas de vidro coloridas desde a Antiguidade. Viu que os índios fazem com elas seus colares e enfeites não por as acharem mais interessantes do que as sementes naturais. Não é uma perda, mas um ganho. O que vem de fora, no pensamento desses povos, tem um valor diferenciado. É perigoso e atrai ao mesmo tempo. Tudo o que vem de fora inspira e faz construir novas relações, novos padrões de beleza e abre novas possibilidades. O Museu do Índio convida você a mergulhar nessas relações diferentes”.

O convite deve ser aceito, especialmente porque nesse mundo fedorento de Cunha, Collor, Renan, petrolão e cerverós, a exposição do Museu do Índio é bálsamo para a alma, colírio para os olhos e massagem para a inteligência. O Museu está todo miçangado, até suas portas e janelas Se você é leitor deste Diário do Amazonas, pode escolher entre tomar ou não conhecimento da exposição, opção que eu não tive. Sou assinante de dois jornais, um do Rio e outro de São Paulo, e não encontrei uma notinha sobre o acontecimento, sequer uma linha, uma mísera vírgula. Só releases promocionais, alguns deles repetidos por ambos jornais, de eventos com gente que eu nem conheço, que deveriam aparecer como propaganda comercial e não como notícia, o que é um engano.

Nas páginas destinadas à cultura dos dois jornais, li matérias sobre o anúncio do Google no Brasil que abre sede do You Tube no Rio de Janeiro, sobre o campeonato de gastronomia, sobre o Dee Bufato que toca com Sean Diss na Arte Inn, sobre os coletivos Somm e Gop Tun que comandam o Countdown no Mira, sobre a música Nhenhenhen e os dez anos de carreira de Maisa na televisão e sobre o novo livro de receitas da Ana Maria Braga. Todos temas de transcendental importância, é claro. Nada sobre as miçangas. Depois, absolutamente desinformados, os jornais acabam escrevendo besteira sobre a mandioca dos índios e da Dilma.

P.S. – Textos consultados: 1) GALLOIS, Dominique Tilkin (org): Patrimônio Cultural Imaterial e Povos Indígenas. São Paulo, Iepé. 2006 (depoimento de João Tiriyó – pg. 22); 2) LAGROU, Els. No Caminho da Miçanga: arte e alteridade entre os ameríndios. Enfoques – Revista dos Alunos do PPGSA-UFRJ, v.12(1), junho 2013. [on-line]. pp. 18 – 49; 3) TODOROV, Tzvetan: La Conquête de l’Amérique : La Question de l’autre.Paris. Le Seuil. 1982. 4) MILLER, Joana. As coisas. Os enfeites corporais e a noção de pessoa entre os Ma­maindê (Nambiquara). Tese de Doutorado em Antropologia Social. Museu Na­cional/UFRJ, Rio de Janeiro, 2007; 5) VAN VELTHEM, Lucia. O Belo é a Fera. A estética da produção e da predação entre os Wayana. Lisboa: Museu Nacional de Etnologia, 2003.

P.S. Fotos, quase todas, eu acho, do Mário Vilela.

 

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