Lei da Mineração em terras indígenas: uma nova tentativa de tutelar os indígenas. Entrevista especial com Carlos Bittencourt

“Esse projeto e a suposta urgência para sua aprovação servem apenas às mineradoras”, adverte o historiador

Por Patrícia Fachin – IHU On-Line

As tentativas de aprovar a Lei da Mineração em terras indígenas “fere o espírito da Constituição. Esse é o primeiro aspecto que me salta aos olhos”, afirma Carlos Bittencourt em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail. Segundo ele, o PL 1610/96, que autoriza a exploração mineral em terras indígenas, não pode ser “desvinculado” da PEC 215, que sugere uma mudança no artigo 231 da Constituição Federal, atribuindo ao Congresso Nacional a aprovação da demarcação e ratificação das terras indígenas já homologadas. As duas medidas, pontua, sinalizam que “estamos diante dos antecedentes da batalha final contra os povos indígenas, muito próximos de um etnocídio completo”.

Na avaliação de Bittencourt, a possível exploração mineral em terras indígenas não trará apenas impactos ambientais, com a “destruição dos bens naturais”, mas vai implicar uma “degradação cultural, a inviabilização de formas de ser e estar nos territórios, a instituição das formas capitalistas de relação entre patrões e empregados, nas quais não estão fundadas a estrutura cooperativa do trabalho indígena”.

De acordo com ele, um dos principais problemas do PL 1610/96 é o fato de não dar aos indígenas “o direito de dar a palavra final sobre a entrada de empresas mineradoras em suas terras, desrespeitando a Convenção 169 da OIT da qual o Brasil é signatário”. Além disso, enfatiza, “o projeto retoma uma concepção tutelar e integracionista da questão indígena, vinculada à visão do antigo Serviço de Proteção aos Índios – SPI. (…) A última palavra seria dada pelos órgãos da institucionalidade nacional, como o Senado, e as consultas seriam completamente tuteladas através da Funai”.

Carlos Bittencourt é historiador e pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – Ibase. Confira a entrevista.

IHU On-Line – A que atribui a tentativa de aprovação da Lei de Mineração em Terra indígena em caráter de urgência na Câmara dos Deputados?

Carlos Bittencourt – Não atribuo essa urgência a algo. A pergunta mais contundente nesse caso seria: “a quem” se pode atribuir a urgência em se permitir a mineração em terras indígenas? Em um Congresso Nacional cada vez mais comparável a um cassino, lancemos um olhar para o relator do PL 1610/96. Nas eleições de 2014, o Deputado Édio Lopes (PMDB-RR) recebeu, apenas da Vale, 350 mil reais. Outros 680 mil reais das empresas investigadas por subornar entes públicos, as construtoras OAS, Andrade Gutierrez eQueiroz Galvão.

Se perguntarmos a quem serve o regime de urgência para a aprovação da mineração em terras indígenas, a resposta deve ser uníssona, simples, direta. Esse projeto e a suposta urgência para sua aprovação servem apenas às mineradoras.

É verdade que os projetos de poder governamentais subservientes também se beneficiam com os restos desse banquete. No entanto, difícil não pensar nas elites políticas do Brasil, sob o estupor da covardia e da preguiça, flutuando a favor da maré. Quem apita mais na (in)consciência de Édio Lopes, a Vale ou um Yanomami?

IHU On-Line – Quais são os pontos mais polêmicos da Lei de Mineração em Terra Indígena e quais são as principais implicações dessa lei para as comunidades indígenas?

Carlos Bittencourt – A opção da Constituição de 1988, de proibir a mineração em Terra Indígena, antes de uma regulamentação adequada, revelava um princípio de precaução. Tema tão complexo e delicado, necessitaria uma gestação mais profunda do que foi capaz de realizar o próprio processo constituinte. Portanto, em minha avaliação, a lógica da urgência para esse tema fere o espírito da Constituição. Esse é o primeiro aspecto que me salta aos olhos. Votar a abertura das Terras Indígenas para mineração antes de votar o Estatuto dos Povos Indígenas é um ataque gigantesco aos direitos desses povos.

Além disso, a dimensão colonial, colonizante do projeto de Lei é evidente. É impossível pensar o PL 1610/96 desvinculado da PEC 215. Estamos diante dos antecedentes da batalha final contra os povos indígenas, muito próximos de um etnocídio completo. Não devemos pensar que a entrada da mineração em uma Terra Indígena seja acompanhada apenas da degradação ambiental e da destruição dos bens naturais. Virá também a degradação cultural, a inviabilização de formas de ser e estar nos territórios, a instituição das formas capitalistas de relação entre patrões e empregados, nas quais não estão fundadas a estrutura cooperativa do trabalho indígena.

Um dos principais problemas é que o projeto não dá aos indígenas o direito de dar a palavra final sobre a entrada de empresas mineradoras em suas terras, desrespeitando a Convenção 169 da OIT da qual o Brasil é signatário. O projeto retoma também uma visão superada pela Constituição em vigor que é a tutela do estado sobre os índios e sobre seus direitos.

IHU On-Line – De que modo o PL 1610 trata da questão indígena? Qual seria a participação das comunidades na exploração de minérios, caso o PL fosse aprovado?

Carlos Bittencourt – Como disse, o projeto retoma uma concepção tutelar e integracionista da questão indígena, vinculada à visão do antigo Serviço de Proteção aos Índios – SPI. Não tem como base o convívio fraterno e a promoção de direitos às nações indígenas. Trata as terras indígenas como espaço para geração de riqueza e lucro e fortalece a perspectiva de integrar os índios aos processos de trabalho formais e informais capitalistas, transformando-os em boias-frias e outros subempregos, rompendo com a estrutura cooperativa de produção indígena e justificando a miséria de algumas aldeias indígenas na ausência de empreendimentos econômicos.

Nesse sentido, a participação indígena fica relegada ao último plano. A justificativa para a entrada da mineração será a “utilidade pública” e o “interesse nacional”, justificativas já estabelecidas em nosso ordenamento jurídico. A decisão sobre os processos minerários se daria fora das instâncias decisórias das nações indígenas; isso está bem claro nas sucessivas entrevistas, relatórios e exposições na própria comissão especial. A última palavra seria dada pelos órgãos da institucionalidade nacional, como o Senado, e as consultas seriam completamente tuteladas através da FUNAI.

IHU On-Line – Quais são as terras indígenas mais visadas pelo setor de mineração?

Carlos Bittencourt – O Instituto Socioambiental fez bons mapeamentos dos interesses minerários nas Terras Indígenas – TIs. Em 2013, eram 4.116 incidindo sobre 152 TIs. Têm o interesse de explorar um universo muito diverso de minerais, desde o ouro, alumínio, titânio e fosfato, tanto através de empresas minerárias como de lavra garimpeira. Como não possuo conhecimentos geológicos, posso supor que o tamanho dos interesses tenha a ver com o tamanho das empresas mineradoras. Só para citar alguns exemplos, podemos lançar os olhos para algumas empresas multinacionais que têm a posse de requerimentos minerários em Terras Indígenas, como a Anglo American (TI Menkragnoti...), a Vale (TI Apyterewa, TI Kayabi, TI Menkragnoti, TI Paraná…), Anglo Gold Ashanti (TI Kayapó…), BHP Billiton (TI Nhamundá-Mapuera…).

IHU On-Line – Como as comunidades indígenas têm se posicionado acerca da Lei de Mineração? Há consenso entre os indígenas acerca das implicações da aprovação dessa lei?

Carlos Bittencourt – As organizações indígenas que conheço se posicionam contrárias ao projeto. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB, por exemplo, defende que o Estatuto dos Povos Indígenas deva ser aprovado antes de qualquer modificação legal que afete os indígenas. Não se trata de dizer que algumas comunidades indígenas não possam estar a favor da entrada da mineração em suas terras, estabelecer condições para isso, por exemplo. Trata-se da compreensão de que se não se impõe limites muito claros e concretos à possibilidade de mineração nas terras indígenas, estaremos certamente diante do capítulo final do genocídio indígena.

IHU On-Line – Qual é a relação entre a Lei de Mineração em Terra Indígena com o novo Marco da Mineração?

Carlos Bittencourt – A pressa em aprovar ambas revela o vínculo profundo entre elas. A mineração é um dos principais setores que financiam as campanhas dos parlamentares do Congresso Nacional. Ao mesmo tempo tem sido um dos segmentos privilegiados no modelo de desenvolvimento adotado nos últimos anos, uma das bases, por exemplo, da busca por superávit comercial. Ampliar a capacidade de exploração mineral brasileira é um dos planos do Plano Nacional da Mineração 2030, no qual são previstas metas ambiciosas para o aumento do volume de minérios extraídos.

IHU On-Line – Quais são os limites das leis de defesa dos direitos indígenas diante da tentativa de aprovação de projetos de lei como esse que propõe a exploração de minérios em áreas indígenas? Por que a Convenção 169 da OIT é desconsiderada nos diversos projetos do Estado brasileiro?

Carlos Bittencourt – A mineração é tida pelo ordenamento jurídico brasileiro como atividade de utilidade pública e interesse nacional; isso significa na prática que ela se impõe como prioridade sobre quase todos os outros usos dos territórios. Aprovar a mineração em terras Indígenas é abrir a porteira para um avanço avassalador. A legislação existente atualmente é frágil diante dos interesses minerários, as convenções das quais o Brasil é signatário, especialmente a 169 da OIT, são letras mortas, cotidianamente desrespeitadas, frente aos poderosos interesses da mineração e de outros setores econômicos. O impulso colonizador, a sanha anti-indígena, a sede por terra, minérios, água segue no coração do nosso modelo. É necessária uma mudança radical de rota caso queiramos interromper o verdadeiro etnocídio que está em curso.

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