“Brasil: um país em que reina a hegemonia”

Por Patrícia Bonilha, Assessoria de Comunicação – CIMI

Corajosa, Deborah Duprat é uma indiscutível aliada de diversas minorias que compõem a sociedade brasileira.  Durante sua meteórica atuação como procuradora-geral da República interina, quando pela primeira – e única – vez na história do país, uma mulher comandou o órgão superior do Ministério Público Federal (MPF), ela atuou amplamente na defesa de pautas polêmicas e impopulares. Nos 22 dias de junho-julho de 2009 em que chefiou a Procuradoria Geral da Republica (PGR), ela defendeu os direitos de homossexuais e transexuais; de mulheres fazerem o aborto de anencéfalos; a liberdade de expressão e de manifestação pela legalização das drogas, mais especificamente o direito de realização das Marchas da Maconha; além de ter questionado a medida provisória de regularização fundiária da Amazônia Legal, por avaliar que o texto da lei privilegiava grileiros.

Como subprocuradora-geral da República e, há 11 anos, coordenadora da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão (CCR), cujo escopo de atuação reúne grupos que têm um modo de vida tradicional distinto da sociedade nacional majoritária, como os indígenas, quilombolas, comunidades extrativistas, comunidades ribeirinhas e ciganos, Deborah Duprat critica a omissão dos Três Poderes em relação à obrigação do Estado de defender os direitos e interesses destes grupos. Especificamente sobre os povos indígenas, ela afirma que “estamos vivendo um dos piores momentos pós-Constituição de 1988 no que diz respeito a direitos territoriais indígenas”. Nesta entrevista, ela expressa opiniões sobre a inconstitucionalidade da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, o desmonte da Fundação Nacional do Índio (Funai), as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e a economia verde, dentre outros tópicos.

Porantim – Como a senhora avalia a atual situação dos povos indígenas no Brasil em relação aos seus direitos territoriais?

Deborah Duprat – Avalio que estamos vivendo um dos piores momentos pós-Constituição de 1988 no que diz respeito a direitos territoriais indígenas. Isso porque, pela primeira vez, os Três Poderes, por ação ou omissão, passam a percepção de que há excesso nas demarcações de terras indígenas e de que é preciso adotar providências no sentido de assegurar direitos de propriedade de terceiros.

Porantim – Uma das maiores ameaças aos povos indígenas atualmente é a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215. Na sua opinião, ela é inconstitucional?

Deborah Duprat – A 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF encaminhou ao Congresso Nacional nota técnica em que aponta inconstitucionalidades da PEC 215, a qual está disponível no sítio eletrônico 6CCR.pgr.mpf.mp.br. Também o STF, em mandado de segurança impetrado, salvo engano, pela Frente Parlamentar de Apoio aos Povos Indígenas, já sinalizou que a PEC 215, se aprovada, terá sua inconstitucionalidade declarada.

Porantim – Os povos indígenas vêm, constantemente, denunciando a situação de extrema vulnerabilidade da Fundação Nacional do Índio (Funai) – tanto em Brasília como nas regiões. No final de 2013, “vazou” uma proposta do próprio Executivo de modificar o procedimento de demarcação de terras indígenas. Como a senhora avalia estas duas situações?

Deborah Duprat – O Bourdieu fala dessas instituições, tal como a Funai, que são criadas com a aparência de que estão atendendo a uma demanda de dado movimento social. O artifício gera uma das dominações mais eficazes, que é o domínio sobre o tempo. As pessoas, mesmo vendo que não são atendidas em suas pretensões, continuam presas a essas instituições, que são o único espaço possível, dentro da Administração Pública, de realização de seus direitos. Ou seja, continuam enredadas numa instituição que foi intencionalmente concebida para não funcionar. É o que vemos com a Funai, sem estrutura material, sem concurso público para renovação e ampliação de seus quadros, sem orçamento para a realização de suas múltiplas funções e, principalmente, assediada para não cumprir a função típica para a qual foi criada a demarcação de terras indígenas. Eu não conheço proposta alguma de novo procedimento de demarcação de terras indígenas, apenas ouço boatos de que há a intenção de alterar o Decreto 1775. Temos que aguardar para ver o desenrolar dessa história, principalmente no que diz respeito à consulta da Convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho].

Porantim – Em setembro de 2014, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) invalidou a demarcação da Terra Indígena (TI) Guyraroká (cuja tradicionalidade já foi comprovada pelos estudos antropológicos), tendo como fundamento uma interpretação do marco temporal. Ou seja, a anulação do processo de demarcação deu-se porque os indígenas não estariam no território na época da promulgação da Constituição Federal, em 1988. Para a senhora, quais são os problemas desta decisão do STF?

Deborah Duprat – Há vários problemas nessa decisão, como mostram os embargos de declaração apresentados pela PGR [Procuradoria Geral da República]. Gostaria de destacar o que me parece o mais grave: uma concepção civilista de posse, contrária à disciplina constitucional de posse indígena. Há vasta literatura relativa aos Guarani, mostrando que, com o esbulho de suas terras, engendraram meios e modos de ali permanecer, como perambulando por esses territórios, realizando caça, pesca, rituais, empregando-se nas fazendas, além de outras formas. De modo que, no sentir dos Guarani, estavam e estão na posse de suas terras.

Porantim – Ainda em setembro, no dia 30, o STF anulou a portaria que declarou a TI Porquinhos, do povo Canela-Apãniekra, no Maranhão, desconsiderando um parecer da PGR de que houve um erro no processo demarcatório. Em dezembro, outra decisão do STF suspendeu o processo demarcatório da TI Limão Verde, do povo Terena, e reduziu o conceito de esbulho. Essas três recentes decisões do STF representam um retrocesso na atuação deste órgão em relação aos direitos dos povos indígenas?

Deborah Duprat – Aqui também padecem de maior análise os conceitos de posse e esbulho sob a perspectiva desses povos. Por ora, essas decisões estão limitadas à 2ª Turma do STF. É preciso levar a discussão ao Plenário da Suprema Corte e melhor qualificá-la, com aportes antropológicos e jurídicos. Em outros países, como Colômbia, Equador e Bolívia, as suas Cortes Constitucionais tiveram um papel fundamental na afirmação de direitos indígenas. Acredito que o STF também exercerá idêntico papel.

Porantim – O Brasil deveria se reconhecer como um Estado Plurinacional, como fazem a Bolívia e o Equador, além do Canadá e da Espanha, dentre outros? Quais seriam os benefícios deste reconhecimento?

Deborah Duprat – O Brasil ainda está longe de realizar, por completo, a passagem de um modelo tutelar para um modelo emancipatório. O instituto da consulta da Convenção 169, a presença dos indígenas e das comunidades tradicionais no processo de licenciamento, por exemplo, revelam bem como nossas práticas ainda têm um caráter colonial muito forte. Por outro lado, a nossa diversidade étnica é muito maior do que a dos países referidos. Temos que buscar soluções em que as diferenças dialoguem, encontrem consensos possíveis, ainda que provisórios, e não que se isolem em si. O grande desafio não é o reconhecimento do “pluri”, mas sim do “inter”. O pluralismo é uma realidade empírica que se descreve. A interculturalidade é um desafio para os países plurais, em que saberes, visões de mundo, linguagens dialogam sem hierarquias, sem relações de poder.

Porantim – O que os povos indígenas podem fazer diante das ofensivas dos Três Poderes para terem seus direitos constitucionais, de fato, assegurados?

Deborah Duprat – Os povos indígenas têm suas estratégias de lutas, e a 6ª Câmara jamais pretendeu interferir ou retirar-lhes o protagonismo. Percebo, no entanto, que há, ainda, bastante incompreensão quanto à mudança operada pela Constituição de 1988. Como passamos 500 anos com práticas integracionistas, com o Estado voltado a um único modelo de sujeito de direito, há enorme dificuldade, em todos os setores, de pensar soluções dentro desse novo cenário jurídico. O papel que resolvemos assumir foi de levar a uma maior reflexão sobre o tema. Nesse sentido, acabamos de formar um grupo de estudos dentro da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), sob a minha coordenação, com o propósito de realizar seminários e cursos para toda a magistratura nacional. Também resolvemos produzir maior material teórico. Está em vias de sair um livro sobre a Convenção 169, resultado de um seminário internacional que realizamos no ano passado. Também os grupos de trabalho da 6ª CCR começam a fazer abordagens mais teóricas, na perspectiva da interculturalidade.

Porantim – Lideranças do povo Suruí foram recentemente à 6ª Câmara solicitar a anulação de um contrato de sequestro de carbono em suas terras, assinado com uma empresa de cosméticos. Outros povos indígenas estão sendo assediados para efetuarem contratos de mercado de carbono. Qual a posição da 6ª Câmara em relação a estes projetos de Redd (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação) e de outros mecanismos da economia verde, como o Pagamento de Serviços Ambientais (PSA)?

Deborah Duprat – Em primeiro lugar, é preciso assegurar a autonomia e o protagonismo indígenas. O papel do MPF é alertar sobre possíveis conseqüências negativas, previstas ou não no contrato. E intervir na eventualidade de haver ilegalidade.

Porantim – O MPF tem alguma avaliação sobre estes mecanismos da economia verde?

Deborah Duprat – Não há, institucionalmente, uma posição a respeito. Eu, pessoalmente, vejo com péssimos olhos essa mercantilização da natureza. A defesa do meio ambiente requer mudança de paradigma, e não a internalização das práticas que o ameaçam, como essa visão instrumental que acompanha o projeto capitalista de desenvolvimento. No entanto, como já disse, respeito a opção dos povos indígenas que veem nessa a única possibilidade de sobrevivência minimamente digna, ao menos temporariamente.

Porantim – Na sua opinião, qual seria a melhor solução para os casos em que o próprio Estado cedeu áreas dos territórios tradicionais indígenas para proprietários particulares, como ocorreu no Mato Grosso do Sul e na região Sul, principalmente?

Deborah Duprat – Em Encontro Nacional da 6ª CCR, foi produzido um enunciado permitindo indenização – pagamento pela terra nua – com base no princípio da proteção à confiança legítima. Ou seja, o particular acreditou que o Estado, ao lhe transferir aquela terra, conferia-lhe um título legítimo. Daí por que ali fez o seu investimento de vida. Deve ser amplamente recompensado pelos danos que vier a sofrer pela perda daquela que acreditava ser sua propriedade.

Porantim – Por que os povos indígenas e as comunidades tradicionais são tão invisibilizados no Brasil ainda hoje?

Deborah Duprat – Porque infelizmente, a despeito de toda a transformação operada pela Constituição de 1988, pela Convenção 169 da OIT e pela declaração da ONU [Organização das Nações Unidas] para os povos indígenas, e por vários outros documentos internacionais, o Estado brasileiro ainda não se livrou de suas práticas e convicções hegemônicas.

Porantim – É possível conciliar a atual perspectiva de desenvolvimento ocidental, implementada pelo governo brasileiro, com o efetivo respeito aos direitos dos povos indígenas e das comunidades tradicionais?

Deborah Duprat – Não se trata de possibilidade, mas de imperativo jurídico. A Convenção 169 da OIT trata do instituto da consulta exatamente com esse propósito, de impedir que os chamados “projetos de desenvolvimento” possam ocorrer em sacrifício de povos indígenas e comunidades tradicionais. A Corte Interamericana de Direitos Humanos tem mais de um precedente em que o veto das comunidades aos empreendimentos tem caráter absoluto, quando ocorre especialmente uma dessas duas hipóteses: desterritorialização forçada e interferência significativa no modo de vida do grupo.

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