Nota da Comissão da Verdade do Rio sobre a Vila Autódromo

A Comissão da Verdade do Rio vem investigando as remoções forçadas perpetradas pela ditadura militar brasileira, em prejuízo do direito à moradia adequada entre os anos de 1964 a 1985. A pesquisa, orientada por Juliana Oakim e Marco Pestana, observa com atenção que o projeto ditatorial, a fim de promover a exclusão social das populações empobrecidas e o favorecimento econômico da classe dominante, viabilizou as políticas de remoção em áreas nobres do Rio de Janeiro, em uma iniciativa que visava a erradicação das favelas da cidade. Deste modo, favelas há muito tempo estabelecidas na Lagoa, Gávea, Maracanã, etc. sofreram processos de remoção, todos mediante violência, perseguição às organizações de resistência política e sem diálogo com os moradores, que se viram obrigados a morar em bairros distantes de seu local de trabalho, rede de amigos e familiares e sem infraestrutura básica de serviços.

Em depoimento prestado à CEV-Rio, Altair Guimarães, liderança da Vila Autódromo, na Barra da Tijuca, relatou a traumática experiência de ser desalojado da Ilha dos Caiçaras, em 1968, e da atual tentativa da Prefeitura em remover os moradores da Vila Autódromo:

“Fomos tirados dessas comunidades (Favela do Pinto, Ilha das Dragas e Ilha dos Caiçaras) como animais. Na época, a COMLURB* tinha caminhões com janelinhas iguais as dos trens. O governo, a Polícia Militar e a COMLURB iam botando nossas coisas pra cima dos caminhões de lixo, metendo pé de cabra e marreta nos barracos, derrubando. Não respeitavam as crianças, não respeitavam os mais velhos e não é diferente hoje. A mesma coisa que acontecia na época da ditadura, acontece hoje. Não conhecia nada em Jacarepaguá e com 14 anos olhando pela janela do caminhão da COMLURB eu ficava me perguntando para onde eu estaria indo. E aonde eu fui cair? Na Cidade de Deus. Sem nenhuma infraestrutura, pois na época do [governador] Lacerda ainda estava em construção, era barro puro, não tinha escola, só tinha uma padaria, não tinha nada. E aí eu os meus amigos fomos separados, alguns foram para Cordovil e outros foram para outro lugar. Vivi uma vida muito ruim na minha adolescência com essa mudança de um lugar para o outro. Eu não desejava que as crianças dessa comunidade [Vila Autódromo] passassem pelas mesmas coisas que eu passei, mas, infelizmente, não consegui”.

Chama atenção da Comissão a fragilidade e alternância das justificativas apresentadas nas últimas décadas para a remoção da Vila Autódromo, que vão desde o infundado dano estético e ambiental provocado pela comunidade nos anos 90, até o atual prejuízo à mobilidade urbana supostamente representados pelo bairro. Ao visitar a Vila Autódromo para ouvir Altair, a equipe da CEV-Rio constatou o interesse do mercado imobiliário nesta região, que possibilita a continuação da expansão urbana da Zona Oeste da cidade. Neste cenário, a Vila Autódromo está localizada entre hotéis de luxo (já em construção) e a Lagoa de Jacarepaguá, paraíso natural semelhante à Lagoa Rodrigo de Freitas, visada pelo mercado imobiliário durante os anos 60 e motivadora das remoções das favelas do Pinto, Catacumba, Ilha das Dragas e Ilha dos Caiçaras naquela década. À época, a administração pública também alegava a impossibilidade de se residir nessas áreas. No entanto, logo em seguida grandes empreendimentos imobiliários foram construídos no mesmo local, sem chance de que os antigos moradores retornassem.

A Comissão da Verdade do Rio se preocupa com a possibilidade de que Altair e os demais moradores sejam forçadamente removidos, ao invés de terem finalmente garantido seu direito à moradia digna mediante investimentos públicos em urbanização. Somente com a mudança dos paradigmas autoritários alcançaremos a não-repetição das violações de direitos humanos que caracterizaram a ditadura militar, objetivo perseguido pela CEV-Rio ao promover memória e verdade, e encaminhar recomendações ao Estado brasileiro.

* A empresa encarregada da limpeza urbana à época era a DLU – Departamento de Limpeza Urbana do Estado da Guanabara.

Foto: Lucas Pedretti

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Paula Carvalho.

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