Para se reaproximar de povos mapuches, Chile estuda criar ministério e cotas para indígenas

Bachelet enviou comitiva para ouvir líderes comunitários; além de reforma constitucional, governo deixará de enquadrar povos na Lei Antiterrorista

Victor Farinelli | Santiago – Opera Mundi

O governo chileno da presidente Michelle Bachelet está tomando uma série de iniciativas para mudar a relação do Estado com as comunidades indígenas mapuches, um conflito que já dura mais de cem anos. A partir de uma comitiva enviada às regiões periféricas do país para ouvir diversos líderes comunitários e receber propostas de atuação, o Executivo estuda adotar políticas públicas para se reaproximar dos povos originários: uma reforma constitucional, a criação de um Ministério Indígena e a exigência, por meio de cotas, de representação mínima em cargos legislativos.

A consulta nacional às comunidades foi realizada no segundo semestre de 2014, por meio de um comitê que se reuniu com lideranças das regiões continentais e insulares — incluindo, por exemplo, os indígenas Rapa Nui, na Ilha de Páscoa. A responsável por organizar a consulta foi a ministra do Desenvolvimento Social, María Fernanda Villegas. Conforme seus relatos, a proposta de criação de um ministério foi a primeira ideia de consenso entre todos os consultados.

“Estamos trabalhando com grupos étnicos com demandas históricas, muito sensíveis e diferentes, dentro de suas problemáticas regionais. Mas é unânime a necessidade de uma instância governamental que aproxime a Administração Pública dessas comunidades”, afirmou a ministra, antes de enviar os projetos de lei à Câmara dos Deputados

A criação do Ministério Indígena, entretanto, é apenas uma das iniciativas surgidas da consulta. As demais sugestões foram incorporadas ao projeto de reforma constitucional, que deve ser anunciado no segundo semestre — o governo deve esperar encerrar a tramitação da reforma educacional para lançar a nova empreitada no Legislativo.

Entre as outras propostas surgidas da consulta está a criação de uma nova regra eleitoral, estabelecendo representação mínima em cargos legislativos aos povos originários e comunidades afrodescendentes, seja por meio de cotas ou de outro mecanismo.

Indígenas tratados como terroristas

Desde a campanha presidencial, em 2013, Michelle Bachelet deu sinais de que buscava nova relação com os povos indígenas, especialmente com as comunidades mapuches — durante seu primeiro mandato (2006-2010), os contatos não foram nada amigáveis. Tanto, que Bachelet teve que, às vésperas do segundo turno eleitoral, pedir perdão aos mapuches por ter acionado a Lei Antiterrorista após um confronto entre indígenas e latifundiários, embate comum na região da Araucania, sul do país.

Os mapuches são o único grupo étnico indígena reconhecido como nação pela Coroa Espanhola, ainda durante a colonização, através de um tratado que passou a ser desconhecido pelo Estado chileno após a independência, e que vem sendo reivindicado desde então pelas comunidades.

O desconhecimento chileno do tratado entre os espanhóis e os mapuches criou outro conflito que se aprofundou na região da Araucania: entre os indígenas e os latifundiários que começaram a ocupar a zona através das armas, a partir de meados do século XIX — com base no mesmo acordo que estabeleceu o reconhecimento como nação, os colonizadores se comprometiam a respeitar os limites territoriais dos ancestrais mapuches, compreendidos entre o que hoje são as zonas pré-cordilheiranas das regiões da Araucania, Bío-Bío, Los Ríos e parte de Los Lagos.

O conflito armado se intensificou no século passado, quando os mapuches também passaram a utilizar armas de fogo para se defender. Um dado que ajuda a entender a disputa é o fato de que todos os presidentes chilenos após o fim da ditadura acionaram a Lei Antiterrorista contra os mapuches pelo menos uma vez em seus mandatos — por isso, a relevância do gesto de Bachelet ao pedir perdão por tê-lo feito em seu primeiro mandato.

Segundo o jornalista mapuche Pedro Cayuqueo, diretor responsável pelos diários Mapu Expresse Azkintuwe, a existência da Lei Antiterrorista ainda é um dos problemas na relação entre o Estado e as comunidades. “Todos os presidentes chilenos fracassaram em sua relação com os mapuches, até mesmo Salvador Allende, mas a partir da ditadura essa relação tornou-se pior, porque passaram a tratar-nos como terroristas, o que é um absurdo porque os chilenos foram os que começaram a usar as armas de fogo”.

A alegação de Cayuqueo e das comunidades mapuches foi reforçada em julho de 2014, quando a CIDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos) condenou o Chile pelo uso da Lei Antiterrorista contra as comunidades mapuches em cinco oportunidades durante este século, nas administrações de Ricardo Lagos (2000-2006), Michelle Bachelet (2006-2010) e Sebastián Piñera (2010-2014). Dias depois, o ministro Rodrigo Peñailillo anunciou a criação de um grupo de trabalho que elaboraria uma nova Lei Antiterrorista, e reforçou o compromisso de não utilizá-la contra os mapuches, em conflitos com latifundiários — uma das exigências determinadas pela CIDH.

Disputa territorial

A aposta de Bachelet em se aproximar dos mapuches também passa pelo tema territorial. Em março de 2014, a presidente nomeou Francisco Huenchumilla para ser intendente da região da Araucania, e seu sobrenome mapuche causou incômodo entre os latifundiários da zona. Em agosto, o intendente causou polêmica, ao declarar que a solução dos problemas na região nunca chegará enquanto não houver uma política de devolução de terras aos mapuches.

“A violência na Araucania não vai acabar enquanto houver centenas de famílias ocupando um hectare de um lado e uma dúzia de senhores com mais de dois mil do outro”, afirmou Huenchumilla. Após essa declaração, organizações ruralistas e partidos da oposição pressionaram Bachelet para que pedisse sua demissão, mas o governo decidiu apoiá-lo e o manteve no cargo.

“A resistência mapuche não se negocia”: Manifestantes fazem ato em 2010 por mais direitos às comunidades indígenas mapuche – Carol Crlsosto Cadiz/Flickr/CC

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