Novo romance de Nei Lopes resgata movimento negro no Brasil da década de 1950

Misturando ficção e pesquisa histórica, livro mostra momento de efervescência cultural e luta por direitos

Por Bolívar Torres, O Globo

Fincado em uma travessa obscura da Esplanada do Castelo, o Café e Bar Rio Negro foi o reduto da negritude carioca, aquela “dos poetas africanos e antilhanos de fala francesa”. Era lá que artistas e intelectuais negros se reuniam para discutir os rumos da política e da sociedade nos anos 1950. Entre duas rodadas de chope gelado, uísque escocês e sanduíche de pernil assado, seus frequentadores construíam um espaço de resistência em um Centro da cidade cada vez mais branco e elitizado.

Embora apareça em detalhes nas páginas de “Rio Negro, 50”, novo romance de Nei Lopes (dá quase para sentir o cheiro de pernil assado dominando o ar), a casa nunca existiu na vida real. Trata-se de um espaço fictício, criado pelo escritor e compositor para resgatar uma história esquecida: a da consolidação do movimento negro no Brasil — esta, sim, verídica. Autoridade nas questões afro-brasileiras, o autor faz um apanhado da efervescência dos anos 50, década decisiva no reconhecimento da contribuição do negro à cultura do país.

Misturando ficção e pesquisa histórica, personagens reais e imaginários, o romance tem como pano de fundo as ricas manifestações do período, como a Orquestra Afro-Brasileira de Abigail Moura, os desafios do partido-alto e o Teatro Experimental do Negro, criado por Abdias Nascimento. Episódios marcantes — como a assinatura da Lei Afonso Arinos, primeiro código brasileiro a incluir o preconceito de raça entre as contravenções penais — são passados a limpo pela clientela do Rio Negro, composta por um dramaturgo militante (baseado no icônico Abdias), um jornalista pesquisador das tradições afro-brasileiras e um sempre atento vendedor de amendoim, que faz a ligação com outro estabelecimento colored do centro da cidade, o Abará, frequentado pela turma do futebol e das boates.

Enquanto o povo, indignado pela derrota na final da Copa, procura clones do jogador Bigode para linchar, os personagens debatem a repressão ao candomblé (uma “religião feita pelo povo e para o povo”), a profissionalização das escolas de samba (uma “violência” à identidade do negro), ou ainda o surgimento do Renascença Clube, associação recreativa da classe média negra.

Carioca do Irajá, Lopes vem consolidando uma trajetória literária desde os anos 80. É também reconhecido como pesquisador da presença das línguas africanas na formação do português falado no Brasil. Um dos principais sambistas do país, compôs a trilha de “Bilac vê estrelas”, atualmente em cartaz. Baseado no livro de Ruy Castro, o musical revive o Rio da Belle Époque, marcado pelas reformas urbanísticas de Pereira Passos e a amizade entre o poeta Olavo Bilac e o jornalista José do Patrocínio.

Seus romances mostram a história do país do ponto de vista do povo negro. Em “Rio Negro, 50”, o senhor decidiu focar nos intelectuais e artistas da década de 50. Por quê?

Porque foi a década em que aflorou o protagonismo do povo negro na cultura brasileira, em quase todos os setores, da religiosidade ao teatro musicado, passando pelo rádio, pela aglutinação política, sem falar no futebol e outros esportes. Tudo o que aconteceu nessa década repercutiu depois, apesar do recrudescimento da subserviência aos padrões ditos “globalizados” que veio com a década de 1970.

Como poderíamos definir esse movimento?

Como um eco tardio do que ocorrera na França nos anos de 1910-20 e no Harlem nova-iorquino até a década de 40. Começou-se a pensar a vida dos negros a partir de uma perspectiva própria, incentivando-se o orgulho pelas nossas peculiaridades e pela nossa História.

Em um determinado momento do livro, o senhor narra a visita da antropóloga americana Katherine Dunham ao Rio e a sua decepção com o racismo no país. Quais eram as ligações entre o movimento negro dos Estados Unidos e o brasileiro?

Katherine foi uma panafricanista, como outros artistas da Diáspora africana. Ela, artista e cientista social, pesquisou e atuou em seu país, no Caribe e no Brasil sempre dentro dessa perspectiva. Abdias Nascimento foi o grande elo dessa corrente panafricanista no Brasil. Mas havia outros, como Guerreiro Ramos, Sebastião Rodrigues Alves, Edison Carneiro, Ironides Rodrigues etc, além dos militantes de São Paulo, que vinham dos anos 30, época da Frente Negra Brasileira. Foi um tempo de grande articulação internacional.

No romance, os personagens tentam criar ambientes de resistência na cidade. É o caso do fictício Café Rio Negro, infiltrado em uma zona elitizada. A exclusão também passa por uma questão geográfica — os personagens precisam adaptar sua cultura a um espaço que lhes é hostil…

O aspecto mais emblemático sobre esse ponto é a fundação do Clube Renascença, em 1951. Buscava-se criar um espaço sócio-recreativo para a classe média negra que se estruturava, e que era proibida de ingressar nos clubes de sua classe econômica. Hoje o Renascença, apesar do esforço de fazer efetivamente “cultura” no sentido transformador da palavra, só é visto como uma casa “de samba”. E isso não é nada bom.

Esse tipo de redução continua sendo comum?

Isso acontece em razão dos mesmos mecanismos que negam ao samba sua condição de elemento fundamental e definidor da cultura musical brasileira, colocando-o sempre no gueto espaço-temporal do carnaval. Dentro dessa engrenagem perversa, que obedece inclusive às regras da cultura de mercado, um clube “de negros”, como é ainda o perfil do Renascença, é mais aceitável como uma casa de samba (carnavalesca, enfim), jamais como uma “casa de cultura”, onde se pense as questões do povo afro. Felizmente, no nosso “Rena”, ainda tem gente trabalhando para fazer valer, lá, esta condição, como é o caso do produtor Asfilófio de Oliveira, o Dom Filó, dono de acervo filmográfico de valor inestimável, exibido em sessões semanais no clube, para um público que não é necessariamente o das rodas de samba.

O romance retrata o momento em que “os pretos e mulatos começam a reivindicar melhor posição no conjunto da sociedade”. Como analisa a evolução desse movimento, 60 anos depois?

No meu entender, a política partidária atrapalhou e continua atrapalhando muito. Ela criou conselhos, assessorias etc, para a participação do povo negro na política. E, com isso, acomodou a situação de exclusão e dificultou a expansão da consciência dos afrodescendentes sobre seus interesses específicos, que precisam ser defendidos de verdade, a sério, em todas as instâncias legislativas, em todo o território nacional, nas cidades e no campo. Temos que ser representados na proporção exata de nossa presença na população brasileira, por parlamentares que trabalhem por nossos direitos com dedicação exclusiva. Mas diante do que se vê hoje…

Como vê a permanência da cultura negra atualmente? O samba e as religiões africanas, por exemplo, estão ameaçados no Brasil contemporâneo?

A ameaça chega a ser sinistra. Quem vive nas periferias das grandes cidades sabe do que estou falando. E essa ameaça vem ganhando um poder cada vez maior, de maneira assustadora. E sendo legitimada pelos poderes constituídos.

Que ameaça seria essa?

A ameaça tem vindo das chamadas “igrejas eletrônicas”, donas de poderosas concessões de radiodifusão, que demonizam a cultura afrobrasileira de todas as formas. E isso volta e meia tem sido noticiado pela grande imprensa. Outra pedra no caminho é a “cultura negra sem negros”, gerada no âmbito da indústria cultural, do marketing, dos patrocínios…

Um aspecto importante de sua obra é mostrar o protagonismo do negro na história do país e da literatura. Pesquisas mostram, porém, que a literatura brasileira, pelo menos nas grandes editoras, ainda é predominantemente branca — por seus temas, personagens e autores. Como mudar essa situação?

Para mim, a grande questão da literatura, como de outros segmentos da ação cultural, são as relações que se tecem ao longo da vida. O escritor afrodescendente quase nunca é bem relacionado nos meios de produção editorial e no seu entorno, e assim raramente consegue mostrar o seu trabalho. De modo geral, ele, seus avós ou seus pais não estudaram nas mesmas escolas que as pessoas hoje influentes, ou seus pais e avós frequentaram. E este é apenas um exemplo. A sociedade brasileira continua extremamente estratificada e fechada: a entrada nos círculos de poder e decisão é muito difícil para o povo negro. E, para boa parte desse círculo, o que se espera sair da pena de um escritor afrodescendente é o espetáculo da miséria, da violência, da exclusão. Exatamente para que cada um fique “no seu lugar”. Eu sei que o nosso povo tem uma outra História e outras histórias. E eu seria um idiota se desprezasse toda essa grande experiência que está sendo a minha vida, todo esse imenso patrimônio que me foi legado.

Destaque: O escritor e compositor Nei Lopes – Hudson Pontes.

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