Os 19 anos dos 19 mortos em Eldorado dos Carajás

Pela primeira vez, um ministro de Estado veio ao ato organizado pelo MST, no Pará, e prometeu assentar todos que estiverem em acampamentos. Corrupção do INCRA em Marabá segue questão em aberto

Por Felipe Milanez, de Eldorado do Carajás

Na “Curva do S” da estrada que liga Marabá à Eldorado dos Carajás, o MST organizou nessa sexta-feira, como o faz todos os anos no dia 17 de abril, um ato em memória dos 19 militantes que foram assassinados pela Polícia Militar em 1996. A data se tornou o dia internacional de luta pela reforma agrária. E pela primeira vez nesses anos de luto, um Ministro de Estado esteve presente: Patrus Ananias, acompanhado da presidenta do INCRA, Maria Falcón. O ato aconteceu após uma semana de intensas atividades do Acampamento da Juventude, com jovens militantes que vieram dos estados do Pará, Tocantins e Maranhão. Havia autoridades, deputados federais, como Valmir Assunção e Siba Machado, e estaduais, vereadores e prefeitos da região.

A pauta era a reforma agrária. Porém, mais do que tudo, a violência no campo. Violência do passado, lembrada pela memória, e violência do presente. Por ser tão atual, violência, ali, era também um tema delicado. Maria Raimunda, liderança do MST que organizava o ato no palco, é ameaçada de morte e sofre diversos problemas psicossomáticos em decorrência dessa “violência silenciosa”. O governo havia oferecido deixa-la rodeada permanentemente por policiais para sua “proteção”, e ela comentou comigo: “e como eu iria dar aula com os policiais junto comigo, como dar um beijo na praça sendo vigiada, como ir a reuniões do movimento para discutir nossas estratégias? Isso é tentar me excluir da política. Por que não viram o foco para aqueles que ameaçam?”.

Patrus Ananias começou sua fala abordando o elevado grau de violência que ocorre tanto no campo paraense, como no Brasil inteiro. “A questão da violência no Brasil é um desafio que deve mobilizar todos nós, corações e consciências”, disse no discurso. Prometeu ressignificar a reforma agrária no Brasil para que os “assentamentos se tornem espaços de vida, auto sustentáveis, espaços de produção de alimentos saudáveis”.

Maria Falcón, no palco, fez três promessas. Disse que virá em maio passar uma semana na região para se reunir com prefeitos e movimentos sociais. “Aqui é uma área de ruralidade, o problema urbano é do campo também.” A base teórica de sua administração será a “visão de território”: “vamos pensar esse território campo-cidade juntos, a ruralidade”. Falcón referia-se, sobre a territorialidade camponesa, também no antagonismo que existe na região entre a agricultura camponesa e os projetos extrativistas predatórios e desenvolvimentistas, como a mineração — atividade está que recebe incomparavelmente mais recursos e subsídios. A vinda do INCRA de Brasília para a regional se encaixa numa descentralização administrativa que irá se chamar “Projeto INCRA Itinerante”: “Vai sair de Brasília e ir para os estados brasileiros e vamos começar pelo Pará.”

Para assentar todos os acampados, como teria prometido Dilma a Ananias, disse que, segunda promessa, era focar os assentamentos em terras públicas, “em ano de dificuldade financeira, vamos atacar por ai: onde for terra pública vamos acelerar novos assentamentos”. Ou seja, aparentemente,  menos enfrentamento ao latifúndio. No entanto, se essas terras públicas a que ela se refere forem as grandes propriedades griladas que dominam o campo na Amazônia, daí sim seria possível imaginar que as centenas de acampamentos poderão ser assentados. E, a terceira promessa de Falcón, seria dar infraestrutura para os assentamentos, o “desenvolvimento”: “não basta fazer, tem que desenvolver”.

Logo que chegaram, Ananias e Falcón, que foram bem recepcionados pelos movimentos sociais, com votos de apoio e confiança em suas nomeações, foram conhecer o belo e tocante monumento aos mártires, representado pelos esqueletos de castanheiras secas recolhidos em pastagens. Foram guiados nesse percurso da memória por Charles Trocate, poeta, intelectual e liderança de destaque do movimento na Amazônia. Enquanto Trocate contava a brutalidade do massacre e a história da luta na região, foram interrompidos por uma senhora que se apresentou como mãe de uma vítima: “infelizmente, meu filho nunca vai poder contar a história”, disse ela, provocando comoção.

Corrupção no INCRA em Marabá

Ali mesmo foi organizada uma breve entrevista coletiva. Ananias mostrou comprometimento com a luta pela reforma agrária e disse que a presidenta Dilma prometeu assentar todas as pessoas que estão acampadas, até o fim de seu governo — ele veio reforçar essa promessa no seu discurso. Não prometeu, no entanto, quando questionado, quando serão assentados os acampados em diversos acampamentos na beira da estrada entre Marabá e a curva do S, como na fazenda Cedro, do grupo Santa Barbara, de Daniel Dantas.

Falcón, que assumiu há pouco a presidência do INCRA, foi questionada, por mim, sobre os graves casos de corrupção que assolam a Superintendência Regional 27 do INCRA, localizada em Marabá, e quais medidas concretas seriam tomadas por Brasília. A corrupção no INCRA foi denunciada pelo MST em setembro do ano passado, como um “esquema de sustentação política e financeira” de um grupo criminoso, com desvios, entre outros, de verbas do Pronaf, no texto Quem aperta o gatilho nos assassinatos do campo no Pará?. Essa é uma das causas da explosão de conflitos na região.

O esquema teria sido montando, segundo denúncia do MST, pela então deputada estadual Bernadete Ten Caten (PT-PA) enquanto foi superintendente do INCRA, o que resultou em uma condenação por desvios de verba pela Justiça Federal. Seu filho, Dirceu Ten Caten, foi eleito deputado estadual, pois ela não poderia concorrer. No ato, ele dirigiu-se “à juventude sem terra” e não demonstrou constrangimento no palco diante das acusações de corrupção vinculadas a sua campanha. A acusação do MST sustenta que o esquema criminoso teria continuado mesmo após saída de Ten Caten do INCRA: “nos anos 2012 e 2013, o marido de Bernadete, Luis Carlos Pies, esteve na superintendência como secretário, com fortes indícios de dar continuidade à trama de Bernadete.”

Charles Trocate, a liderança do MST que contou a história do massacre ao ministro Ananias, havia denunciado: “O monopólio que o PT exerce na direção do Incra só trouxe prejuízo aos camponeses, e só trouxe poder ao grupo ao qual o Incra está submetido. Todos os superintendentes da instituição nos últimos anos só trabalharam para obter como resultado final a eleição de prefeitos, vereadores e deputados”.

Além disso, durante o ato, uma liderança do assentamento agroextrativista Praialta Piranheira, em Nova Ipixuna, onde o casal de extrativistas José Cláudio e Maria foram assassinados em 2011, que estava presente mas pediu para não ser identificado, disse que funcionários do INCRA estariam cobrando propinas para fornecer registros de posse que são gratuitos e a que eles teriam direito — além do INCRA ainda ter assentado ilegalmente o mandante do assassinato do casal, José Rodrigues Moreira, o que estaria provocando mais conflitos, mais ameaças e, possivelmente, novos assassinatos em breve.

Falcón, que assumiu o órgão há um mês, disse que corrupção é um problema de gestão e que seria enfrentado pela investigação, automatização dos processos, tecnologia e melhoria na gestão. E ela prometeu, em seu discurso, que em maio irá se deslocar até Marabá onde ficará por uma semana para aproximar o INCRA da região: “vamos deslocar o INCRA de Brasília para as regiões e desburocratizar os processos”. O fato é importante e foi comemorado: o seu antecessor nunca havia vindo a Marabá, e, segundo os movimentos sociais, esse descaso de Brasília teria sido uma das razões da grave crise regional. É possível que quando Falcón venha para Marabá ela se depare, localmente, com as graves denúncias que têm sido feitas pelos movimentos sociais. Se terá força política para retomar o INCRA para sua atividade fim, a reforma agrária, desvinculando dos benefícios de poucos, é uma questão que certamente vai além de sua competência e formação.

O advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT), José Afonso Batista, falou sobre a memória do massacre e a atualidade dos conflitos. “Algumas razões nos trazem aqui hoje. A primeira delas é fazer memória aos 19 companheiros que foram brutalmente assassinados 19 anos atrás. Além de fazer memórias, também não podemos deixar de fazer memória a tantos outros que foram assassinados nessa região na luta pela posse da terra. De acordo com os dados da CPT, apenas no sul e sudeste do estado, são mais de 600 assassinatos nas últimas décadas.”. Ele lembrou de lideranças importantes como José Dutra da Costa, Expedito Ribeiro, Analice Barros, Arnaldo Delcídio, entre outros. Disse para o ministro: “em cada assentamento criado aqui na região tem sangue de trabalhador derramado”.

A violência, disse Batista, opera contra as pessoas e o meio ambiente, “enquanto a maioria dos recursos públicos são usados para fortalecer a expansão dos setores da pecuária madeira e mineração”. Sobre a realidade específica, ele disse que “de acordo com nossos registros, mais de 200 camponeses e lideranças foram assassinadas no estado do Pará depois do massacre”. Hoje, no sul e sudeste do Pará, calculou Batista, há 120 fazendas ocupadas por 12 mil famílias, enquanto mais de 60 mil famílias vivem em assentamentos. “A demora na solução do conflito é uma das causas principais da violência. Quanto mais tempo demora, o trabalhador está mais exposto à violência do pistoleiro, do fazendeiro e da polícia”

Tito, liderança nacional do MST pelo Pará, cobrou melhorias dos assentamentos, aumento dos recursos e o assentamento dos acampados. Disse que “no Pará tem muita coisa a ser feita.” “Aqui na região estamos sofrendo até quando se tem terra para trabalhar, e não tem condições de se desenvolver. Enquanto isso, os fazendeiros estão muito bem obrigado. Mas os fazendeiros vão ter que abrir mão da terra porque os camponeses vão ocupar”. Pelo tom dos discursos, é provável que caso o governo federal continue ignorando a reforma agrária, novas ocupações vão acontecer, e a reforma agrária sai, prometem os movimentos sociais, “na lei ou na marra”.

Informado sobre o fato de ter sido o primeiro ministro a participar do ato em memória dos mortos no Massacre de Eldorado dos Carajás, Ananias me disse: “Estou cumprindo o meu dever. A palavra ministro, na origem dela, quer dizer, aquele que serve. Então estou convencido de que devemos estar próximo do povo e dos movimentos sociais.”

Destaque: Patrus Ananias, primeiro ministro de Estado a relembrar tragédia. Foto: Felipe Milanez

 

 

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