ADI 5296: O dilema de um governo social contra os pobres

Por Cláudio L Santos

A ação de declaração de inconstitucionalidade – ADI nº 5296, que visa a declaração de inconstitucionalidade da emenda constitucional – EC nº 74 de 2013 (que concedeu autonomia à Defensoria Pública União – DPU), se julgada procedente pelo Supremo Tribunal Federal – STF, significará um retrocesso em termos de garantias constitucionais e direitos humanos, em especial para a população carente do país, comprometendo o próprio fortalecimento do Estado Democrático de Direito.

Nos últimos anos a Defensoria Pública alcançou avanços significativos, culminando com a EC 80, que deu nova redação ao artigo 134 da Constituição da República, verbis: “A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5o desta Constituição Federal.” Como se vê, é a Defensoria Pública verdadeiro órgão de transformação social.

Com a (famigerada) declaração de inconstitucionalidade, a DPU retornará ao espaço do Poder Executivo, como um braço do Ministério da Justiça – MJ, totalmente dependente e de “pires na mão”, numa existência “emergencial e provisória” (Lei nº 90025/1995), que se perpetua até hoje! (A DPU permaneceu nessa condição de provisoriedade durante 20 anos. Sem carreira de apoio até hoje. Sem estrutura até hoje. Sem interiorização até hoje. A DPU está em menos de um terço das localidades onde está a Justiça Federal e o Ministério Público Federal, por exemplo. Hoje, várias unidades do Brasil estão com restrição de atendimento por não poder contar com serviço de limpeza, por exemplo).

Portanto, o que se pretende é um retrocesso histórico em termos de promoção de direitos humanos, de cidadania, em síntese, de democracia.

O fundamento lançado na ADI, protocolada no último dia 10 de abril no STF, pela Presidenta da República, como a seguir será demonstrado, tangencia a má-fé. Alega vício de iniciativa, porquanto a mencionada EC teria sido iniciada pelo Legislativo e não pelo Executivo Federal. E que a matéria trataria de regime jurídico de servidores, cuja iniciativa é do Executivo Federal (Artigo 61, da CRFB), o que ofenderia o princípio da separação de poderes.

Ocorre que ao conceder autonomia administrativa e financeira à DPU, via EC 74, o Legislativo tratou de tema diverso (organização política de Estado/criação de órgão autônomo), na legítima e precípua função de Poder Reformador. E os limites previstos no Artigo 60, § 4º, da Constituição foram observados. São situações bem distintas.

Não podemos perder de vista que a teoria da tripartição de poderes deve sofrer releitura a partir da dinamicidade e complexidade da sociedade contemporânea, posto que pensada em contexto histórico absolutamente distinto.

Ademais, a EC 74 somente veio corrigir distorção constitucional criada quando da edição da EC 45 (que concedeu autonomia às Defensorias Públicas Estaduais, dentre outras alterações). Essa Emenda, também de iniciativa do Legislativo, criou uma distorção no sistema público de acesso à justiça, na medida em que a DPU continuou como um braço “estranho” no MJ, sem autonomia. Ora, em sendo a Defensoria Pública uma instituição una, não era coerente aquele estado de coisas.

Enfim, a EC 74 pode ser entendida como uma espécie de “EC integrativa”, já que corrige uma teratologia constitucional criada pela EC 45 (frise-se que a PEC previa também autonomia para a DPU, que foi retirada de última hora). É ainda importante dizer que essa EC (45) já foi objeto de questionamento, inclusive, quanto à iniciativa (ADI 3367/DF) e o STF, na ocasião, entendeu-a constitucional (embora, nesse caso, o vício alegado considerava a iniciativa do Judiciário).

Não deixando margem à dúvida de que o ajuizamento da ADI se trata de uma decisão eminentemente política (que, repita-se, pretende um retrocesso histórico em termos de promoção de direitos humanos, de cidadania, de democracia), está o fato de várias emendas constitucionais guardarem essa mesma característica (inciativa pelo Legislativo em temas de organização de Estado) e não terem sido objeto de questionamento até a presente data. Somente a guisa de ilustração, listamos algumas delas: EC 11/97; EC 16/97; EC 45/04; EC 47/05; EC 60/09; EC 69/12; EC 70/12, EC 77/14 e EC 79.

Considerando essa forte conotação política, portanto, encerra uma contradição em termos um Governo que se qualifica como social atacar a Defensoria Pública. Além de afrontar o próprio Parlamento que traduziu a vontade popular concedendo autonomia às Defensorias Públicas e, ainda, os organismos internacionais como a OEA – Organizações dos Estados Americanos que o Brasil está vinculado, cuja Resolução nº 2821/2014 preconiza justamente o fortalecimento da Defensoria Pública, com reconhecimento da sua autonomia.

Que a Corte Suprema dê uma resposta rápida e eficaz contra esse ataque contra a cidadania brasileira, prestigiando seus precedentes e, sobretudo, na direção da construção de uma Defensoria Pública Brasileira una, sólida e fortalecida.

Cláudio L Santos é Defensor Público Federal.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Dion Monteiro.

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