Após 45 anos, sangue Yanomami levado aos EUA é repatriado para RR

Sangue Yanomami foi coletado sem autorização entre os anos 1960 e 1970. Repatriação ocorreu em março por meio do Ministério Público Federal

Inaê Brandão – Do G1 RR

Depois de 45 anos, os índios da etnia Yanomami conseguiram a repatriação do sangue coletado por cientistas norte-americanos da Universidade da Pensilvânia. O material, que chegou ao Brasil em 26 de março, será levado para a aldeia de Piaú, região de Toototobi, na Terra Indígena Yanomami em Roraima, nesta sexta-feira (3), onde ocorrerá uma cerimônia com lideranças indígenas. O ritual deve marcar a devolução do sangue à tribo.

O caso, que ficou conhecido como ‘Sangue Yanomami’, ocorreu entre as décadas de 1960 e 1970 quando um antropólogo e um geneticista coletaram amostras de sangue de indígenas no Brasil e na Venezuela sem autorização das lideranças do povo.

O acordo para a repatriação do sangue foi articulado pela Secretaria de Cooperação Internacional, e foi assinado entre o Ministério Público Federal (MPF) e a Universidade da Pensilvânia em março de 2015. Os trabalhos começaram em 2002, quando as lideranças indígenas procuraram o MPF e, segundo o órgão, em 2005 a Procuradoria da República em Roraima instaurou um procedimento administrativo.

Em março, centenas de amostras chegaram ao Brasil e foram tratadas para se tornarem seguras, mas as características físicas não foram alteradas, segundo o MPF. Com a embalagem, foi encaminhada uma certidão atestando a autenticidade do conteúdo.

O procurador da República em Roraima, Gustavo Kenner Alcântara, garantiu que o lote que chegou ao Brasil “representa a absoluta maioria do material genético coletado”. Ainda há amostras nos Estados Unidos, mas o MPF já trabalha para repatriar o restante do material.

‘Sangue é originário’, diz líder indígena
O líder Yanomami, Davi Kopenawa, contou ao G1 que era criança quando teve o sangue retirado pelos cientistas.

“Eu estava com uns 10, 11 anos, e os não-indígenas [cientistas norte-americanos] chegaram à nossa comunidade de Toototobi. Lá eram 4 aldeias que estavam com um grupo grande de missionários que moravam com a gente. Os missionários falaram para as lideranças que eles iam tirar o sangue”, disse Davi.

Em troca do material, os americanos ofereceram aos Yanomami terçados, panelas, anzóis, linhas, fósforos e facas. Kopenawa afirmou que não sabe precisar a data em que o fato aconteceu. “Não sei que ano foi, mês, data. Para nós, isso é diferente”.

A luta para resgatar o material genético começou, segundo Davi, no final dos anos 80 quando um antropólogo lembrou o líder indígena sobre o acontecido em Toototobi. “Um antropólogo falou para nós sobre o sangue, esse sangue que não era para levar e que não era para ter deixado tirar. Foi assim que eu lembrei do ocorrido”.

Acompanhado de um Yanomami representante do povo na Venezuela, Davi foi para os Estados Unidos dialogar com antropólogos americanos para pedir a repatriação do sangue. “O antropólogo nos Estados Unidos me falou: ‘Davi, nós não somos índios. O nosso pensamento é diferente. O sangue já está no papel. Tudo anotado, documentado, isso é burocracia, costume do branco. Vamos conversar muito e vai demorar’, e eu falei que iria esperar”.

Segundo Kopenawa, seu único desejo era ter o sangue de volta. “Nós queríamos nosso sangue de volta. Os brancos enganaram a gente para levar o sangue. Esse sangue é originário. A gente tem direito a ter ele de volta para onde ele foi tirado”, afirmou.

Ainda de acordo com o líder Yanomami, uma cerimônia ocorrerá na aldeia de Piaú, região de Toototobi, um dos lugares onde o sangue foi coletado, para marcar a devolução do material. “Vou levar o sangue, nós vamos nos reunir e chamar os pajés, entrar em contato com os espíritos tradicionais e fazer uma reza. Nós vamos abrir um buraco na terra, abrir um vidro e derramar o sangue”, contou, afirmando que a tristeza e o choro entrarão no coração de todos.

Motivação da pesquisa norte-americanna
O antropólogo Marcos Braga, professor do Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena da Universidade Federal de Roraima (UFRR), explicou à reportagem que a pesquisa norte-americana escolheu os Yanomami por acreditar que o povo possuía uma ascendência genética diferenciada.

“A pesquisa foi comandada por um geneticista e o antropólogo Napoleon Chagnon, que é muito contraditório. Eles queriam entender se a população Yanomami poderia ser a que atravessou o estreito de Bering (entre a Ásia e a América) para entrar na América, na época glacial”, contou o professor.

O caso ficou mais conhecido em 2000, quando o jornalista Patrick Tierney publicou um livro intitulado ‘Trevas no Eldorado’, que conta a história da pesquisa.

Dominação cultural e ética na pesquisa
Braga afirmou que o caso ‘Sangue Yanomami’ é uma clara demonstração de ‘dominação cultural’ e falta de ‘ética na pesquisa’. Na análise do professor, os pesquisadores não levaram em consideração a autonomia e a cultura do povo indígena quando desenvolveram seus estudos.

“Ao morrer, os Yanomami são cremados e o sangue faz parte do corpo. Eles cremam porque voltar às cinzas é voltar à origem do seu povo, à floresta, na sua terra. Tem um sentido cultural e simbólico muito forte. A leitura que eu faço é que há uma dominação cultural. Achar que o outro é inferior à nossa cultura. ‘Nós’ somos o centro, e os outros são inferiores. Essa ideia de inferioridade vem muito forte nessa ação”, destacou.

Os povos indígenas hoje se fecham cada vez mais para as pesquisas em virtude de ações como essas, segundo Braga. “Faltou ética na pesquisa. Que laboratório era? Que pesquisa? Qual o interesse? Não foi informado”, ressaltou o antrópologo, destacando que hoje há comitês para fiscalizar pesquisas como estas.

O líder Yanomami, Davi Kopenawa, ao lado do material colhido pelos pesquisadores americanos (Foto: Inaê Brandão/G1 RR)

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