Eu sou racista – vol II, por Letícia Bahia

Em Reflexões de uma Lagarta

Comecei este blog com uma postagem chamada Eu sou racista. Contei uma história real que julguei ser a prova cabal de que sim, eu sou racista. Muitos amigos, generosos que são, saíram em minha defesa. Que eu sou um exemplo de postura ética, que trato todas as pessoas com igual respeito, que sou até mesmo a favor das cotas! Mas acho que meus amigos palavreavam apenas para escutarem-se. Penso que se eu os convencesse do meu racismo, eles também teriam que encarar o próprio monstro no espelho. Pois com objetivo de me reafirmar como reprodutora desta nefasta mazela histórica, escrevo esta nova empreitada. Para começar, mais uma história real.

Estou na rua Mourato Coelho. Volto pra casa a pé, depois de algumas cervejas. Já passa da meia-noite e a rua está deserta. É quando o vejo: todo estatelado no chão, vômito secando na calçada que lambe a boca, roupas brancas e cabelos loiros. Estará dormindo? Estará vivo? Não há ninguém com ele, e penso que uma atitude minha pode resultar em ambulância, hospital, soro na veia, ressonância magnética na cabeça. Posso até mesmo salvar sua vida, se vida houver.

Meu namorado está comigo e não parece hipotetizar o mesmo drama que eu. Diz que é apenas um bêbado, mas eu insisto para que verifiquemos o status do corpo. Aproximo-me de sua boca fedida e sinto sua respiração. Dorme profundamente, um sono que provavelmente só dormira quando bebê. Pergunto se não devemos revistar seus bolsos, procurar por um endereço ou pelo telefone de uma mãe aflita. Meu namorado quer ir embora, e então faz a pergunta que me desmancha feito papel molhado: “você faria tudo isso se ele fosse negro?”.

A resposta exata não é “não faria”. A resposta mais precisa é “não fiz”. Eu nunca fiz nada em todas as centenas de vezes que cruzei pessoas negras largadas na sarjeta. Estou de tal modo acostumada a ver estas pessoas nesse lugar – físico e simbólico – que naturalizei a situação e não me sinto impelida a fazer nada. Não parece haver nada para consertar. É triste, por certo, mas é como é. O menino branco, este não! Este está no lugar errado! Ele não pertence à rua, e a sujeira não lhe pertence. Pessoas brancas e loiras – eu aprendi – não são da rua. É claro que minha reação também leva em consideração as roupas, o andar, o aspecto do sujeito –  o que também é grave. Mas a pergunta que ouvi precisa ser respondida com honestidade: sim, a escala de melanina está entre os meus critérios.  Se isto não é racismo, estou no aguardo da nova definição. Eu sou racista, mas estou tentando deixar de ser.

Minha vida tem sido fácil. Estou sempre no ponto estatístico em que todo brasileiro quer estar. Minha família sempre teve carro, televisão, computador casa (própria) grande com banheiro só pra mim. O que eu fiz pra ter tido tudo isso? Porra nenhuma. Aliás, eu poderia ter sido a pior filha do mundo, mas ainda sim meu pai teria feito o diabo a quatro pra me manter estudando no Santa Cruz, escola que ele e muitos consideram a melhor de São Paulo. Onze anos de educação de ponta, presente do nosso senhor Jesus Cristo, que me elegeu para nascer filha dos meus pais e não de uma mãe preta, pobre e solteira. Também ganhei na promoção, inteiramente grátis, viagens à França, Espanha, Argentina, Chile, intercâmbio em Londres, carro. Ah, e não nos esqueçamos de que também não tenho mérito nenhum por não ter sido uma criança subnutrida e sempre ter tido os melhores médicos à minha disposição. Ah, como eu gosto de ser branca.

Aos amigos que me defenderam, eu peço que parem. É urgente que vocês reconheçam como é gostoso ser branco. Estas coisas que nós ganhamos, sabem, elas não são nossas. Nós não fizemos por merecê-las, e se com a ajuda desses presentes gratuitos nós conseguimos nos tornar pessoas melhores e mais bem sucedidas, é nosso dever devolver aquilo que recebemos sem qualquer merecimento.

Se você é branco, você é beneficiário do racismo. Você tem mais chances de conseguir um emprego, mais chances de chegar à universidade, menos chance de contrair HIV, mais chance de ser preso ou morto pela polícia. A história do seu povo é contada nos livros como “a História”, enquanto a história dos ancestrais negros se apaga, levando consigo a identidade do povo que colocamos pra limpar nossas privadas. Se a sua religião não é de matriz africana, você provavelmente pode exercê-la livremente no Brasil, e não precisa que ONGs e raros políticos lutem pra que seus símbolos e sua mitologia não desapareçam ou sejam “celebradas” com uma estampa étnica na São Paulo fashion week. E não, não se trata só de grana. Se uma família rica e ruiva adotar uma garotinha negra, ela sofrerá bulling na pré escola do Santa Cruz, ela verá seus semelhantes fazendo papel de subalternos na TV e na vida real e os adultos do parquinho pensarão, quando a virem brincando com sua irmã da cor da minha, que ela é a filha do porteiro. Mesmo rica, a menininha de ébano terá mais dificuldades do que se fosse branca. Como foi que nos acostumamos a tamanha atrocidade?

Faço diariamente o exercício de perceber meus privilégios, e quero convidar meus amigos, de novo, a fazerem este exercício. Sim, nós somos racistas. É uma herança histórica que não vai se desconstruir enquanto a mantivermos trancafiada no porão. A senzala está na rua – quantos negros existem ao seu redor enquanto você lê esse texto? – e já passou da hora de darmos voz e visibilidade para esta população que oprimimos. A cada minuto que você não se preocupa com isso, você, como eu, é racista.

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