Nota Técnica da Defensoria Pública do Estado de São Paulo sobre a proposta de redução da maioridade penal

A Defensoria Pública do Estado de São Paulo, por meio do Núcleo Especializado de Infância e Juventude, diante da missão de exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos de crianças e adolescentes, bem como diante do objetivo da Defensoria Pública de primar pela dignidade da pessoa humana, pela redução das desigualdades sociais e pela prevalência e efetividade dos direitos humanos, vem por meio da presente nota manifestar-se contrária às propostas de emenda constitucional que pretendem a redução da maioridade penal, com base no que segue.

Inicialmente, é de se destacar que, conforme bem lançado no Parecer do Deputado Luiz Couto, Relator da PEC 171/1993 na CCJ, a proposta de redução da maioridade penal é inconstitucional. E, do nosso ponto de vista, esse argumento é suficiente para que a proposta seja definitivamente rejeitada.

A Constituição Federal prevê as chamadas cláusulas pétreas, que são dispositivos constitucionais imutáveis, que não podem ser objeto de modificação. Se constituem como limitações materiais ao poder de reforma da Constituição. O artigo 60 da Constituição em seu parágrafo 4º disciplina que não poderá ser objeto de emenda a proposta tendente a abolir: IV – os direitos e garantias individuais.

Os direitos e garantias individuais mencionados pelo artigo acima citado são todos aqueles expressos no texto constitucional no artigo 5º, além de outros previstos na Constituição decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, e pelos direitos previstos em tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Assim sendo, os direitos e garantias individuais que se constituem cláusula pétrea não são somente os expressos no artigo 5º da Constituição, podendo ser encontrados em outros dispositivos constitucionais e tratados internacionais ratificados pelo Brasil.

O artigo 228 da Constituição Federal, que trata da imputabilidade penal a partir dos 18 anos, trata de um direito individual fundamental e, portanto, é imutável.

Além da imputabilidade penal a partir dos 18 constar expressamente na Constituição Federal, a idade de 18 anos passou a ser referência mundial para a responsabilização penal com o advento da Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil pelo Decreto Legislativo 28/1990 e promulgada pelo Decreto 99.710/1990. Por força do que dispõem os já citados artigos 60, º 4º, IV e 5º, §2º, ambos da CF, esse direito individual está incorporado na Constituição Federal e, portanto, não pode ser alterado por emenda à constituição.

Dessa forma, sendo o Estado Brasileiro signatário da Carta da ONU, bem como da referida Convenção, cabe ao Brasil honrar com os compromissos contraídos em âmbito internacional, não se coadunando com um Estado Democrático de Direito o feitio de contrair obrigações em sede internacional, apresentando, assim, uma faceta de respeitador dos direitos humanos, porém, de outra banda, traindo a confiança pelos demais Estados-parte da ONU quando da modificação da legislação pátria.

Ademais, é o mais balizado entendimento doutrinário, bem como é posição da jurisprudência das Cortes Internacionais de Direitos Humanos o princípio da vedação ao retrocesso social. Referido princípio funciona como um limite à possibilidade de reforma legislativa, e visa impedir que direitos sociais já conquistados sejam suprimidos por lei posterior. Como prevê o artigo 6º da Constituição Federal, os direitos relativos à infância são considerados direitos sociais e, portanto, não podem ser suprimidos ou reduzidos. Assim, a imputabilidade penal a partir dos 18 anos é um direito constitucionalmente garantido, que se constitui direito social por configurar proteção à infância, não podendo ser alterado para reduzir a garantia já conquistada.

Ainda, é de se esclarecer que existe uma falsa compreensão de que o direito penal é capaz de prevenir e impedir que delitos sejam praticados. A submissão de adolescentes ao Código Penal e, portanto, ao sistema carcerário dos adultos, não atingirá o objetivo almejado pela proposta, qual seja, redução da criminalidade.
Basta observarmos que as medidas de endurecimento do sistema penal adotadas ao longo dos anos foram incapazes de reduzir a criminalidade e garantir segurança à população.

Pesquisa do Ministério da Justiça aponta que a população carcerária no Brasil entre 1995 e 2005 saltou de 148 mil presos para 361.402. Este período de crescimento de 143,91% nos índices de criminalidade ocorreu após a promulgação da Lei dos Crimes Hediondos (Lei n.º 8.072/1990), aprovada após forte clamor social, vista como esperança de imediata redução dos índices de criminalidade. Ao contrário, além de não reduzir, a criminalidade aumentou fortemente no período, o que demonstra a incapacidade do sistema penal para, sozinho, garantir à população a tão almejada segurança pública.

Ainda segundo a pesquisa, entre dezembro de 2005 e dezembro de 2009, a população carcerária aumentou de 361.402 para 473.626, o que representou um crescimento de 31,05% em quarto anos. Durante este período de crescimento entrou em vigor, no ano de 2006, a Lei que endureceu as penas dos crimes relacionados ao tráfico de drogas (Lei n.º 11.342/2006). Esta lei também foi promulgada durante um período de forte pressão social para adoção de medidas que diminuíssem a criminalidade, o que, como visto, não aconteceu.

Pesquisas também apontam que que a reincidência dos adultos submetidos ao sistema prisional corresponde a 70%, sendo que a reincidência dos adolescentes submetidos a medidas socioeducativas corresponde apenas a 20%, o que ratifica ainda mais o entendimento de que o sistema penal não é adequado e suficiente para prevenir a prática de novos delitos.

Ademais, nos 54 países que reduziram a maioridade penal, não se observou redução da criminalidade, sendo que Alemanha e Espanha, após reduzirem a maioridade penal, voltaram atrás nesta decisão, diante da ineficácia da medida.

Assim, resta claro que o endurecimento do sistema penal e a redução da maioridade penal, submetendo adolescentes ao mesmo regime dos adultos, não atingirá o objetivo de redução da violência e criminalidade. A segurança pública, para que seja efetivada, depende da implementação de políticas públicas nas áreas da educação, saúde, moradia, emprego, etc., e não do encarceramento massificado de jovens e adultos.

Por todo o exposto, consideramos que a proposta de emenda constitucional com vistas à redução da maioridade penal é inconstitucional, fere obrigações contraídas pelo Estado Brasileiro em âmbito internacional e, ainda, é inútil à finalidade de conferir maior segurança à população, e, portanto, deverá ser rejeitada.

Mara Renata da Mota Ferreira
Defensora Pública
Coordenadora do Núcleo Especializado de Infância e Juventude

Bruna Rigo Leopoldi Ribeiro Nunes
Defensora Pública
Coordenadora Auxiliar do Núcleo Especializado de Infância e Juventude

Defensores Membros
Bruno Cesar da Silva
Carolina Guimarães Rezende
Claudia Abramo Ariano
Diego Vale de Medeiros
Edgar Pierini Neto
Rafael de Souza Miranda
Gabriela Galetti Pimenta
Giancarlo Slkunas Vay
Jonas Zoli Segura
Leonardo Biagioni de Lima
Letícia Marquez Avelar
Marcelo Dayrell Vivas
Vanessa Pizarro Riguete Correa Porto

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