MS – TRF-3 suspende reintegração de posse do Acampamento Guarani de Pacurity, em Dourados

Tania Pacheco – Combate Racismo Ambiental

Uma boa notícia, para variar, e que além de tudo nos reconcilia um pouco com o sistema de Justiça: o Tribunal Regional Federal da 3ª Região suspendeu o cumprimento do mandado de reintegração de posse do Acampamento de Pacurity, na região de Dourados, Mato Grosso do Sul. A comunidade indígena vive em parte da área ocupada por uma fazenda, a São José, que a Funai já reconheceu pertencer a território sob posse imemorial dos Guarani Kaiowá. 

No processo, após comentar as exigências da Constituição, o relator -desembargador federal Antonio Cedenho- considera que, embora a identificação e a delimitação da Tekoha Pacurity ainda estejam em andamento, “a relação da comunidade indígena de Pacurity com o espaço litigioso da Fazenda São José justifica solução diversa”. E concorda com o Juiz responsável pela decisão em primeira instância, que foi favorável ao grupo indígena.

Em sua Decisão, o desembargador Antônio Cedenho busca dados do processo, citando informações no sentido de os “membros da tribo” [sic] ocuparem o local há mais de oito anos, provavelmente buscando água na única fonte existente “nas áreas de preservação permanente e de reserva legal da Fazenda São José”. Menciona, entre outros, o fato de relatório da Funai de agosto de 2013 indicar a “existência de uma estrutura significativa nos trechos ocupados, o que revela uma fixação relativamente distante”, e conclui:

“O perigo de lesão irreparável ou de difícil reparação decorre do acirramento do conflito fundiário na região e da precariedade das condições dos índios Guarani Kaiowá, que ficarão sem acesso a recursos hídricos. (…) Ante o exposto, nos termos do artigo 527, III, do CPC, defiro o pedido de antecipação da tutela recursal, para suspender o cumprimento do mandado de reintegração de posse”.

O texto da Decisão, datado de 13 de março de 2015, pode ser visto abaixo, dividido em parágrafos para facilitar a leitura:

00050 AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 0000086-24.2015.4.03.0000/MS 2015.03.00.000086-4/MS RELATOR : Desembargador Federal ANTONIO CEDENHO AGRAVANTE : COMUNIDADE INDIGENA DE PACURITY ADVOGADO : MS017315 ANDERSON DE SOUZA SANTOS e outro AGRAVADO(A) : ATILIO TORRACA FILHO espolio ADVOGADO : MS003616 AHAMED ARFUX e outro REPRESENTANTE : JORGE HAMILTON MARQUES TORRACA PARTE RÉ : Uniao Federal ADVOGADO : SP000019 TÉRCIO ISSAMI TOKANO PARTE RÉ : Fundacao Nacional do Indio FUNAI : BONIFACIO REGINALDO MARTINS ORIGEM : JUIZO FEDERAL DA 2 VARA DE DOURADOS > 2ªSSJ > MS No. ORIG. : 00000029320144036002 2 Vr DOURADOS/MS

DECISÃO

Trata-se de agravo de instrumento interposto pela Comunidade Indígena de Pacurity em face de decisão que deferiu pedido de liminar, para reintegrar o espólio de Atílio Torraca Filho na posse da Fazenda São José, situada no Município de Dourados/MS e matriculada sob o n° 67.108 no CRI local.

Sustenta que o imóvel rural integra os limites da terra indígena “Tekoha Pacurity”, já identificada por Portaria do Ministério da Justiça. Argumenta que a conclusão do procedimento demarcatório não é necessária, pois existem indícios de ocupação tradicional. Afirma que a reprodução física e cultural dos povos indígenas demanda um espaço geográfico e a FUNAI já reconheceu que a fazenda pertence a uma área sob posse imemorial do grupo Guarani Kaiowá. Requer a concessão de efeito suspensivo.

Decido.

A Constituição Federal prevê que a demarcação de territórios indígenas será realizada mediante procedimento administrativo, sob a condução do Poder Executivo Federal (artigo 231). Enquanto não houver a publicação de decreto homologatório (artigo 5° do Decreto n° 1.775/1996), toda e qualquer tentativa de apropriação da gleba por grupo indígena caracteriza turbação, esbulho, aos quais o ocupante atual poderá reagir através dos interditos possessórios.

A identificação e a delimitação da terra “Tekoha Pacurity” estão ainda em andamento; sequer existe portaria do Ministério da Justiça que declare a ocupação tradicional e autorize a atividade demarcatória (artigo 2°, §10°, do Decreto n° 1.775/1996).

As circunstâncias apontam para o cabimento do mandado liminar de reintegração de posse. Entretanto, como o próprio Juiz de Origem havia ponderado na primeira decisão, a relação da comunidade indígena de Pacurity com o espaço litigioso da Fazenda São José justifica solução diversa.

Os autos trazem a informação de que uma parte dos membros da tribo ocupava as proximidades do prédio rural há mais de oito anos. Devido às condições precárias do acampamento, em especial a ausência de acesso a recursos hídricos, é grande a possibilidade de que os índios já se abasteciam junto à fonte de água existente nas áreas de preservação permanente e de reserva legal da Fazenda São José.

A perícia policial elaborada logo após o esbulho sugerido (13/07/2013) e o relatório da FUNAI datado de agosto de 2013 indicam a existência de uma estrutura significativa nos trechos ocupados, o que revela uma fixação relativamente distante. Se a incursão na propriedade para suprimento fosse efetivamente recente, o autor não teria aguardado mais de quatro meses para buscar a proteção da posse.

Esses detalhes obscurecem, de certa forma, a data efetiva da invasão, impossibilitando o convencimento de que a ação de reintegração foi ajuizada no prazo de ano e dia. A incerteza do dado cronológico torna incabível o procedimento dos interditos possessórios (artigo 924 do Código de Processo Civil), notadamente a concessão de liminar após a audiência de justificação prévia. A princípio, deve ter sido seguido o rito ordinário, no qual as tutelas de urgência demandam um suporte probatório mais rigoroso (artigo 273).

O Superior Tribunal de Justiça se posiciona nesse sentido: PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. DECISÃO. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. CABIMENTO. AÇÃO POSSESSÓRIA. POSSE VELHA. REQUISITOS. ART 273, CPC. POSSIBILIDADE.

  1. O art. 527 do CPC permite a negativa de seguimento do agravo sem a audiência da parte contrária (inciso I), porque tal decisão não altera a situação jurídica do agravado. O provimento do recurso, todavia, seja ele por decisão singular ou colegiada, não prescinde da prévia intimação da parte adversária (inciso V). Precedente da Corte Especial – RESP 1.148.296/SP, submetido ao rito dos recursos repetitivos.
  2. Esta Corte, em sintonia com o disposto na Súmula 735 do STF (Não cabe recurso extraordinário contra acórdão que defere medida liminar), entende que, via de regra, não é cabível recurso especial para reexaminar decisão que defere ou indefere liminar ou antecipação de tutela, em razão da natureza precária da decisão, sujeita à modificação a qualquer tempo, devendo ser confirmada ou revogada pela sentença de mérito.
  3. Hipótese em que se trata de violação direta ao dispositivo legal que disciplina o deferimento da medida (CPC, art. 273), razão pela qual é cabível o recurso especial.
  4. É possível a antecipação de tutela em ação de reintegração de posse em que o esbulho data de mais de ano e dia (posse velha), submetida ao rito comum, desde que presentes os requisitos requisitos que autorizam a sua concessão, previstos no art. 273 do CPC, a serem aferidos pelas instâncias de origem.
  5. Agravo regimental a que se nega provimento. (STJ, AgRg no Resp 1139629, Relatora Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, DJ 06/09/2012).

A fundamentação do agravo, portanto, é relevante. O perigo de lesão irreparável ou de difícil reparação decorre do acirramento do conflito fundiário na região e da precariedade das condições dos índios Guarani Kaiowá, que ficarão sem acesso a recursos hídricos.

Ante o exposto, nos termos do artigo 527, III, do CPC, defiro o pedido de antecipação da tutela recursal, para suspender o cumprimento do mandado de reintegração de posse.

Comunique-se com urgência. Dê-se ciência da decisão à agravante. Intime-se o espólio de Atílio Torraca Filho para responder ao agravo. Posteriormente, remetam-se os autos ao Ministério Público Federal.

São Paulo, 13 de março de 2015.

Antonio Cedenho – Desembargador Federal.

Destaque – Pacurity. Vazio no meio da monocultura de milho: cemitério indígena foi destruído cinco dias após diligência do MPF. Foto: MPF MS

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