Audiência sobre Barragem no Guapiaçu mostra mobilização e organização da população local

Serra Queimada, Cachoeira de Macacu [1]

Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro

Numa terra de belezas e trabalho, a luta pela permanência no território se apresenta como uma história constante para muitas das famílias da Bacia do Rio Guapiaçu. No último dia 6 de março, em audiência com o secretário do Meio Ambiente do Estado do Rio de Janeiro, André Corrêa, a população juntou forças para mostrar o que fazem e querem daquele lugar.

Embaixo de uma lona e com um calor que ultrapassava os 35 graus, cerca de  600 pessoas, entre agricultoras, agricultores, proprietários, políticos locais, professores, estudantes, crianças, mães, idosos e jovens ouviam atentamente cada uma das falas que se pronunciavam ao microfone. A espera por aquele momento durou pelo menos três anos, tempo em que intimidações, boatos e falta de diálogo com o governo predominaram desde que foram retomadas as articulações de planejamento das obras da barragem no rio Guapiaçu. As incertezas e desinformações, ao mesmo tempo que atormentam a vida e as perspectivas de futuro da população ameaçada, parecem também funcionar como uma estratégia perversa e sútil, que permite o avanço gradual e constante do processo de liberação da obra, mesmo com todas as manifestações de resistência da população local.

A audiência teve início com alguns informes e em seguida algumas falas que contextualizaram o problema e expuseram uma série de informações ao público presente. Fizeram uso da palavra neste primeiro momento representações do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, do Sindicato Patronal (ambos do município de Cachoeira de Macacu[2]), e da OAB/RJ. Todas as falas seguiram muito claramente a mesma linha de argumentação e posicionamento: não à barragem! Com argumentos firmes e embasados em informações, os depoimentos reforçaram a proposta de revogação ao projeto da barragem. Durante as falas, a defesa da agricultura familiar destacou-se como uma das principais justificativas contra o projeto de alagamento do rio Guapiaçu. Os dados apresentados sobre a importância da agricultura familiar da região no que diz respeito ao abastecimento alimentar, particularmente da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, são bastante expressivos. Para exemplificar, cabe citar três elementos que permearam as falas durante a reunião: (i) a atividade agrícola local envolve mais de 15 mil empregos diretos e indiretos; (ii) a região é a maior produtora de aipim do estado do Rio de Janeiro e a segunda maior produtora de goiaba de mesa do Brasil; (iii) a produção agrícola local gera por volta de 100 milhões de reais por ano.

É importante também resgatar que a região do Vale do Rio Guapiaçu foi palco de disputas, de lutas e resistência contra a ditadura militar e contra a expulsão de famílias em um processo histórico de luta pela terra. Em 1966 o Estado, para criar um assentamento para famílias de outra área, despejou e expulsou de forma violenta cerca de 2500 famílias que residiam no local. Este caso e a história das lutas e resistências de camponeses na região vem sendo acompanhado pela Comissão da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-Rio), por meio do projeto “Conflitos e Repressão no Campo no Estado do Rio de Janeiro (1946-1988)”, coordenado pela professora Leonilde Medeiros (CPDA/UFRRJ). Na audiência a CEV esteve representada por Geraldo Cândido, membro da Comissão.

O projeto da barragem no rio Guapiaçu também assombra a população desde 1985, quando, na época, a população também se mobilizou e conseguiu barrar a construção da represa. Daí a importância de rememorar a história de resistência deste povo e utilizá-la como uma forma de inspirar as lutas atuais. Nunca é demais lembrar que o caso da barragem no Guapiaçu se inscreve em um processo recente de desengavetamento de obras e empreendimentos elaborados durante o governo militar (é também o caso, por exemplo, do conhecido projeto – já em execução – da hidrelétrica de Belo Monte, no estado do Pará) e que agora, às custas de um desastroso projeto político neodesenvolvimentista em voga, vêm à tona novamente e voltam a atormentar a vida das populações que sofrem com os impactos dessas mega-obras.

Durante a audiência, os argumentos e depoimentos dos representantes de organizações e movimentos sociais foram se aglutinando e acabaram por mostrar muito claramente a posição das comunidades da região: “não é com barragem que se soluciona a crise hídrica”. Aliás, a crise hídrica, embora seja uma questão posterior ao planejamento da barragem no rio Guapiaçu, vem sendo acionada como uma das principais justificativas para a construção da obra. Mesmo frente a esse “novo” argumento (um tanto quanto improvisado, diga-se de passagem) os depoimentos da população e dos movimentos sociais seguiram afirmando a desnecessidade da barragem. De modo complementar, reiteraram que para o melhor enfrentamento do problema de abastecimento hídrico, especialmente na região metropolitana, há a possibilidade de lançar mão de um conjunto de ações mais estratégicas e sustentáveis, relacionadas, por exemplo, ao cuidado com as nascentes e com o solo nas margens do rio Guapiaçu, juntamente com iniciativas de massificação do reflorestamento que teriam como resultado uma maior capacidade de captação e acúmulo de água, ao mesmo tempo que valorizariam e possibilitariam a manutenção dos camponeses na região. Vale destacar também que no país os maiores consumidores de água tratada são a indústria (22%) e o agronegócio (72%) e não o consumo humano (6%)

Até mesmo a experiência de Nova York foi citada como um exemplo de sucesso. Com vistas ao melhor planejamento dos recursos hídricos, a região metropolitana de Nova York implementou ainda no início da década de 1990 um grande projeto de recuperação e proteção dos mananciais que abastecem a cidade. Ou seja, sem a necessidade de construção de barragem, uma das maiores e mais populosas cidades do mundo conseguiu garantir o abastecimento hídrico através de estratégias e práticas que priorizaram historicamente o aumento das áreas de captação.

O fato evidente é que o argumento da construção da barragem não se sustenta. Em poucos minutos de argumentação, foi possível perceber a fragilidade do projeto e seu caráter inadequado aos propósitos que julga enfrentar através do represamento do Guapiaçu. A proposta da barragem apresentada e da análise do impacto ambiental foram criticados também do ponto de vista jurídico, apontando graves erros, como, por exemplo, a emissão do decreto de desapropriação sem a realização de audiência publica e de notificação da população, e uma série de irregularidades na condução do licenciamento ambiental da obra. Também foi denunciada durante a audiência a queda na vazão do Rio Guapiaçu nos últimos anos, devido ao descuido com as nascentes e margens do rio, o que pode num futuro próximo, caso a barragem seja construída, inutilizar e inviabilizar a represa. Outra contradição relatada é que mais de 40% da população de Cachoeira de Macacu não possui ainda acesso à água tratada.

Como dito acima, o clima de desencontro de informações é generalizado. A população tem dúvidas sobre as reais intenções da barragem. Não se sabe precisamente se o objetivo da construção da represa estaria relacionado ao Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (COMPERJ) ou se teria como proposta o abastecimento hídrico de outras regiões do estado. O fato é que a construção da barragem surge como uma estratégia de “compensação ambiental” em função do próprio COMPERJ, o que não deixa de ser contraditório. Como pode haver uma compensação com uma barragem construída desta forma? Como um projeto que muito claramente acarretará em uma miríade de danos socioambientais para a população local poderia ser encarado como “compensação ambiental”?

Por mais que as informações oficiais afirmem o contrário, nada mais suspeito do que a construção de uma represa nas proximidades de um complexo industrial que demandará água progressivamente e em grande quantidade, a partir do momento que estiver em funcionamento. Novamente, dúvidas. Muitas dúvidas no ar. De qualquer forma, é importante ressaltar que todas as falas foram unanimes em registrar solidariedade e apoio ao desenvolvimento de estratégias alternativas que estimulem a captação de água e o desenho de um projeto de abastecimento hídrico para as zonas urbanas, sempre prezando pela manutenção da vida e das famílias na bacia do Guapiaçu.

Ao final da atividade, foi a vez do pronunciamento do secretário André Corrêa, que também é deputado estadual (PSD/RJ). Para quem esperava respostas claras e um posicionamento a respeito da barragem, o tom da fala foi decepcionante. Centrado na propaganda de outras ações da secretaria, como o Cadastro Ambiental Rural, a fiscalização das irregularidades ambientais e outros programas relacionados à recuperação de nascentes, pareceu se esquivar sobre o tema da barragem. Mas, após o preambulo politico que lhe rendeu atenção e apontou que sua gestão será marcada pelo “diálogo”, afirmou que a barragem segue em análise, sendo uma questão prioritária do governo, mas que não será construída enquanto os problemas da população não forem resolvidos. Disse também estar aberto à alternativas para o problema hídrico que assola o estado, e recomendou aos presentes que apresentem à Secretaria um projeto alternativo à barragem.

Contudo, com a emergência de algum tumulto frente as evidências em sua fala  de que o processo de construção da barragem continuará, o secretário interrompeu o “diálogo” (aquele mesmo que, segundo ele, seria a “marca de sua gestão”) sem responder às diversas perguntas feitas pelo presentes na audiência. Segundo o depoimento de um agricultor da região que acompanhava a audiência, “o secretário colocou uma arapuca na nossa mão”, já que transferiu a responsabilidade por soluções alternativas de abastecimento hídrico para a populaçao, eximindo o poder público desta tarefa e mantendo, de uma forma ou de outra, o planejamento da barragem no Guapiaçu..

Ao final, o secretário saiu às pressas, deixando mais uma vez o clima de desinformação e imprecisão no ar. Os representantes do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) trataram logo de proferir uma fala convocando a todos para a continuidade da luta. Outros participantes reforçaram a necessidade de manter a organização e mobilização em torno da pauta, e o filme “Guapiaçu: um Rio de Janeiro Ameaçado” que retrata o drama vivido na localidade foi transmitido. Certamente novos capítulos dessa história rapidamente virão. O fato é que a população está organizada e não aceitará permanecer no “banho maria” enquanto o projeto avança, como parece querer o governo do estado. Todos sabem e têm cada vez mais certeza. Como diz o lema entoado pelo MAB e cantado no coro coletivo: “Barragem, barragem, barragem eu não sei pra quem!”

Maiores informações sobre o assunto:

Notícias publicadas no site do MAB, em 6/03/2015:http://www.mabnacional.org.br/noticia/secret-rio-do-ambiente-do-rj-se-re-ne-com-fam-lias-atingidas

Documentos e sites relacionados:

Agenda 21 – Comperj: Cachoeiras de Macacú

http://www.agenda21comperj.com.br/sites/localhost/files/Cachoeiras.pdf

 Relatório da AGB sobre a Barragem do Guapiaçu:

http://www.agb.org.br/index.php/gts/agt-agraria/122-relatorio-sobre-a-proposta-de-construcao-da-barragem-no-rio-guapiacu-cachoeiras-de-macacu-rio-de-janeiro

[1] Texto produzido por alunos e ex-alunos do CPDA-UFRRJ: Aline Borghoff Maia, Fabrício Teló, Iby Montenegro de Silva, José Renato Porto e Ligia Bensadon.

[2] É importante ressaltar a convergência entre os sindicatos, onde a representação patronal e dos trabalhadores argumentam contrariamente à barragem.

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