Feminicídio. Uma nova conquista de direitos da mulher

“Para o modelo ainda em grande parte presente na interpretação da lei, pelo Poder Público, Judiciário inclusive, ainda sobrevive uma concepção ultrapassada para sua aplicação, conforme a qual ela tem de ser obedecida estritamente em conformidade com a sua redação”, constata Jacques Távora Alfonsin, advogado do MST, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos. Eis o artigo

IHU On-Line

A presidenta Dilma sancionou, dia 9 deste março, a lei 13.104 “para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos”. A partir de agora, o art. 121 do Código Penal, que prevê o período de prisão para assassinas/os, passa a vigorar com uma nova redação, acrescentando-se ao seu parágrafo 2º, mais uma forma de homicídio “qualificado!”, ou seja, homicídio onde se verifiquem motivos para as penas serem aumentadas.

Além disso, incluiu um parágrafo a mais (o 7º) neste mesmo artigo 121, prevendo outras circunstâncias agravantes capazes de, igualmente, tornar mais rigorosas as penas de homicídios praticados contra a mulher e, inclusive modificou a lei que trata dos crimes hediondos (lei 8.072, de 25 de julho de 1990), reconhecendo o feminicídio tão grave como, por exemplo, os previstos no artigo 5º, inciso XLIII da Constituição Federal, do tipo tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e o terrorismo. Tão grave, igualmente, como outros crimes previstos nessa lei 8072, entre os quais figuram o latrocínio, a extorsão qualificada pela morte, a extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada, o estupro, o atentado violento ao pudor, o favorecimento à prostituição, o genocídio, além de outros.

O parágrafo 2º do artigo 121 do Código Penal, então, e o acréscimo do parágrafo 7º a esse mesmo artigo, ficaram com a seguinte redação:

Homicídio qualificado

§ 2° Se o homicídio é cometido:

I – mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;

II – por motivo futil;

III – com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;

IV – à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossivel a defesa do ofendido;

V – para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime.

VI – contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:

Pena – reclusão, de doze a trinta anos.

§ 2o-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:

I – violência doméstica e familiar;

II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

§ 7o A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado:

I – durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto;

II – contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência;

III – na presença de descendente ou de ascendente da vítima.

Já era tempo de uma lei assim, como a conhecida como a de Maria da Penha, ser promulgada em defesa das mulheres. Tome-se por exemplo a notícia publicada por Cristina Fontenele no site da Adital, dia 5 deste março, sobre a gravidade dos homicídios praticados contra mulheres no Brasil:

“Brasil em números. Segundo um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), entre 2009 e 2011, o Brasil registrou 16.993 feminicídios, resultando em uma taxa de mortalidade anual de 5,82 óbitos por 100.000 mulheres. As regiões Nordeste (6,9), Centro-Oeste (6,86) e Norte (6,42) apresentaram as taxas mais elevadas. Os estados com maiores taxas foram: Espírito Santo (11,24), Bahia (9,08), Alagoas (8,84), Roraima (8,51) e Pernambuco (7,81). Mais da metade dos óbitos (54%) foi de mulheres de 20 a 39 anos. Mulheres negras (61%) foram as principais vítimas em todas as regiões, com exceção da região Sul.”

A necessidade urgente de se prevenir uma violência de tal ordem contra as mulheres, apareceu no próprio ato de assinatura da nova lei. Estava lá a Ministra Carmen Lucia, vice-presidente do Supremo Tribunal Federal e, segundo notícia veiculada dia 11 deste mês, no próprio site do Tribunal, ela foi cumprimentada pela presidenta da República “por sua liderança na mobilização do Judiciário em torno do mutirão Justiça pela Paz em Casa.” (…) “O mutirão, lançado na sexta-feira (6), visa acelerar o julgamento de casos de violência contra a mulher, inclusive com a criação de juizados itinerantes. “No Brasil, o número de casos de violência contra a mulher tem sido virulento, e nosso papel, como juiz, é dar uma resposta a isso”, afirmou a ministra no lançamento. “Se essa resposta não for rápida, ela apenas dá a aplicação da lei, mas não a realização da justiça”.

A parte final desse pronunciamento é muito mais significativa do que parece, não limitada apenas à morosidade e ao atraso com que a pena de quem assassina mulher venha a ser aplicada. Uma coisa é a aplicação da lei, outra a realização da justiça, como a Ministra bem frisou. Para o modelo ainda em grande parte presente na interpretação da lei, pelo Poder Público, Judiciário inclusive, ainda sobrevive uma concepção ultrapassada para sua aplicação, conforme a qual ela tem de ser obedecida estritamente em conformidade com a sua redação, com a sua letra, custe o que custar, sem qualquer questionamento dos possíveis efeitos injustos que isso possa provocar.

Para a vice-presidente do STF, como para muitas/os outras/os juízas/es do Brasil – isso parece claro no pronunciamento dela – há casos em que a aplicação da lei desafia a sensibilidade da autoridade que a aplica, seja a administrativa seja a judicial, para o risco de ela provocar efeito contrário à sua própria finalidade, e em vez de garantir justiça sustente ou até amplie a injustiça.

Justamente quando o Brasil está vivendo um debate nacional sobre corrupção, é impossível ignorar-se o quanto isso implica em apreciação de valores éticos na aplicação da lei pelas/os juízas/es. A Ministra Carmen Lucia, assim parece poder-se concluir sobre o que disse durante o ato de promulgação da lei do feminicídio, está apoiada num clássico estudo sobre “Ética e direito”, de Chaim Perelman (São Paulo:Martins Fontes, 1996):

“O juiz é considerado, em nossos dias, como detentor de um poder, e não como “a boca que pronuncia as palavras da lei”,pois mesmo sendo obrigado a seguir prescrições de lei, possui uma margem de apreciação: opera escolhas, ditadas não somente pelas regras de direito aplicáveis, mas também pela busca da solução mais adequada à situação. É inevitável que suas escolhas dependam de juízos de valor” (…) “Detentor de um poder, num regime democrático, o juiz deve prestar contas do modo como o usa mediante a motivação. Esta se diversifica conforme os ouvintes a que se dirige e conforme o papel que cada jurisdição deve cumprir.”

Espera-se que a aplicação da nova lei sobre o feminicídio se inspire em lições como essa.

Foto: Maria Carolina Trevisan/Ponte Jornalismo

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