Terá a vaca (Brasil) ido pro brejo?

Voltando das ferias, tive a impressão de ter desembarcado em outro tempo para não dizer em outro país. Ou, talvez, em dois países: o da mídia e o real. Difícil definir qual o pior. A distancia ajudou na reflexão. Talvez haja um terceiro país, o do governo, que parece tão distante da realidade como o da mídia

Paulo Cannabrava Filho* – Diálogos do Sul

A realidade, confesso, assusta.

Nos supermercados as coisas básicas quase que dobraram de preço. A gasolina e o diesel além dos pedágios subiram barbaridade. O aumento do combustível provoca aumento em cascata em praticamente todos os demais produtos, principalmente os gêneros de primeira necessidade.

A comunicação é a mais cara do mundo e continua uma porcaria. Vendem e cobram por x e entregam y, sendo y muitas vezes inferior a x. Mesma coisa com a energia elétrica. Os picos danificam os aparelhos e a culpa é da chuva. Apagões de mais de quatro horas e a culpa é das árvores que caíram. E ninguém paga os prejuízos.

O aumento no custo do transporte público já começou a produzir as primeiras manifestações de protesto. Na quinta-feira, 26/1/15 a primeira mobilização do Movimento Passe Livre deste ano reuniu dez mil pessoas, a maioria jovens. É o começo. Em 2013 essas manifestações mobilizaram milhões nas principais cidades do país.

Mas, o que mais assusta é a chamada crise hídrica. Governo e mídia continuam a esconder a realidade, mas os efeitos dramáticos já começam a ficar evidentes. A questão da água assusta porque é irreversível, pelo menos nos próximos 20 ou 40 anos. Algumas empresas já perceberam isso e estão fechando as portas ou mudando para outros lugares.

Vários hospitais e escolas já dependem de carros pipa para funcionarem. Até quando? Assusta porque vai gerar muito desemprego e muita raiva. Aliás, os índices de desemprego já começam a aparecer: 5.3% em janeiro, o mais alto na década.

A Dengue já é epidêmica

Da mesma forma que eludem o problema da água estão escondendo que a Dengue é epidêmica em mais de 20 cidades do Estado de São Paulo; que na região de Limeira e Araras tiveram que suspender as festividades programadas para o carnaval pois a enfermidade já atingiu índices mais que alarmantes e continua se alastrando. Pimentel Neto, um dos editores de Diálogos do Sul, residente em Rio Claro, foi derrubado pela Dengue e com ele mais de 14 mil pessoas. Isso numa cidade de 180 mil habitantes é para estar em estado de emergência, porém, nada fazem e nem noticiam. Em São Paulo, os números admitidos oficialmente é de 51 mil pessoas atingidas pela enfermidade. Pode ser bem mais que o dobro pois muita gente não tem acesso aos serviços de saúde.

Em pelo menos 20 estados os caminhoneiros estão parando em protesto pelos altos custos do combustíveis e dos pedágios numa rede rodoviária em péssimo estado que encarece ainda mais o transporte. E a maioria da produção nacional ainda depende quase que exclusivamente do transporte rodoviário. Décadas de governança burra, extinguiram ferrovias e hidrovias. Estima-se em mais de um bilhão as perdas causadas por deterioração de mercadorias ou atrasos na colheita por causa dessa paralisação. Isso acontece em plena safra recorde da soja que alcançou 94.7 milhões de toneladas. A paralisação dos caminhoneiros no Chile precipitou a queda do governo de Salvador Allende. O desabastecimento é a pedra no sapato de Maduro na Venezuela, aposta da reação para derrubá-lo, ou, simplesmente imobilizá-lo, esperar que caia por maduro.

Rio de Janeiro é hoje uma cidade ocupada militarmente e isso não diminuiu a violência, como era se se esperar, aumentou, inclusive nas 38 favelas em que vigoram as UPPs. Em 2012, 64.357 assassinatos colocaram o Brasil em primeiro lugar no mundo. Em 2014, de cada 100 assassinatos no mundo 13 aconteceram no Brasil. Guerra civil não declarada.

Quem será que realmente governa?

Aqui, o governo parece que não governa.

E isso não é impressão provocada pela mídia-partido-político de oposição. É pela constatação das contas não pagas, das verbas orçamentarias aprovadas e não utilizadas, das obras paralizadas, do excesso de contingenciamento até em áreas vitais como saúde e educação e cultura. É ver a boataria a solta sem reação por parte do governo. E a campanha a soto vocce denegrindo o governo e os quadros do partido governista. Lula falando aos petroleiros lembrou que a demonização dos partidos políticos na Itália resultou em mais de uma década de Berlusconi, sinônimo de máfia. Não precisava recorrer a um exemplo externo, posto que aqui temos Getúlio Vargas e João Goulart, demonizados pelo que tinham de bom, aquele resultando em suicídio este dando início a duas décadas de ditadura.

E não bastasse tudo isso, reina no país a mais insensata insegurança jurídica. E quando já não se pode mais acreditar na Justiça a coisa é muito mais seria do que o fato de a vaca ir pro brejo. E não é que lá fora acreditam que a vaca já foi pro brejo? Capa da britânica The Economist (20/2/15), refletindo o que pensa a imprensa europeia mostra o Brasil como já mergulhado no atoleiro. Juízes deslumbrados pelos holofotes das mídias; processos que se iniciam com os acusados já condenados pela mídia; condenações sem provas se não por pura maldade ou por pura vaidade; julgamentos com clara conotação política; pareceres para enganar os menos informados. Pra que serve a Constituição?

Ver o que estão fazendo com a Petrobras e com as grandes empresas de engenharia nacionais. Será que não há uma razão para tudo isso?

A ditadura do capital financeiro

Tento entender. Para isso tento ver o processo nos últimos 20 ou 30 anos. Anos em que impera a ditadura do capital financeiro.

Primeiro reinou o capital financeiro e com ele a privataria tucana com a desmontagem do parque industrial. Ficou registrado na história como a das décadas perdidas. Não precisa ser de esquerda para entender isso. Ai veio a crise. Alias, crises em série. Lá fora, com a quebra dos grandes bancos que sustentavam o cassino global. Já não dava mais para manter a volatilidade do capital.

Paradigmático dessa fase, é Jorge Soros, durante um tempo o maior especulador nesse cassino global. Seu principal executivo, Armínio Fraga, era quem conduzia a política econômica no fernandato (decênio dos fernandos). Os juros mais altos do mundo garantiam aos investidores (ou apostadores) uma ótima remuneração sem riscos, pois o Brasil é sinônimo de riqueza. Muita gente fechou sua fábrica e aplicou o dinheiro. Outros, do setor dinâmico da economia, venderam suas fábricas para as transnacionais ou se contentaram em ser executivos bem pagos. Nas duas hipóteses, ganhar dinheiro sem fazer nada.

Paralelamente aconteceram algumas coisas fora da especulação: a compra de grandes extensões de terra e produção de commodities. Isso é importante porque gerou demanda por infraestrutura. Exemplo paradigmático é o corredor ferroviário que leva minério de Carajás para o porto de Itaici, emSão Luis do Maranhão. E outros que estão em construção.

O Brasil tem longa experiência na exploração agropecuária e de monoculturas, bem como na extração e exportação de minérios. A modernização, ou melhor, a globalização transformou as fazendas e os engenhos em empresas multinacionais controladas pelas transnacionais. A agroindustria se expandiu gerando mais um ciclo de expansão predatória das fronteiras agrícolas. Rebanho de mais de 200 milhões de cabeça de gado Zebu para exportar carne a custa do desmatamento e produzindo toneladas de metano e carbono.

Tradição herdada da coroa portuguesa, o latifúndio sustentou a economia do país, e ainda sustenta. Tal como no tempo de João VI, hoje exportamos minério bruto para China e dela compramos trilhos.

O segundo tempo começa precisamente quando o cassino global se torna insustentável. A quebradeira geral dos bancos e financeiras custou, na Europa, 300 bilhões de euros. Soros continua sendo nosso paradigma para entender as regras do jogo. O mega especulador vem com toda sua fortuna e energia para o Brasil e passa a ser um dos maiores investidores na produção de commodites agrícolas. Compra enormes extensões de terra e empresas no Brasil e na Argentina. Os grandes monocultivares de soja, cana, sorgo, milho, trigo e, as grandes destilarias de álcool.
Sabiam o que estavam fazendo pois os grãos alcançaram os melhores preços em décadas. Mas, tudo que sobe cai. O petróleo, por exemplo, caiu de 150 para 50 dólares o barril.

Nesse processo, durante essa fase, acontece a descoberta das imensas jazidas petrolíferas do pre-sal. De país importador à possibilidade de se transformar em curto prazo em país exportador. E tudo isso nas mãos e sob controle da Petrobras. Há que lembrar que Lula queria que as plataformas fossem 100 por cento nacionais.  É de imaginar-se a bronca das sete irmãs que praticamente dominam o comercio no mundo ocidental.

Paralelamente, acontece também a auto suficiencia em petróleo pelos Estados Unidos, com a reativação de velhos poços e o desenvolvimento de novas tecnologias para aproveitamento do xisto betuminoso. Há que lembrar que o programa pela autonomia energética estadunidense começou não ontem, mas no governo de Ronald Reagan (1981 a 1989).

A ciumeira do Tio Sam

Nas férias passei pelo Panamá e por Cuba.

No Panamá, transformada num imenso shopping center de produtos importados e numa enorme lavanderia de dinheiro, é notável a grande obra de engenharia realizada por empresa brasileira. A avenida Balboa, que conheci estreita, espremida entre o mar e a cidade, é hoje um imenso bulevar de quatro pistas e extensos jardins. Um aterro comparável ao que fizeram no Rio de Janeiro ligando o centro ao Botafogo.

Em Cuba, em processo de correção de rumo do modelo econômico, a grande obra de infra estrutura, o Porto de Mariel, a uns 80 quilômetros de Cancun e menos de 100 quilômetros de Miami, está sendo construido por empresa brasileira. Muitos empresários estadunidenses devem estar pressionando Obama a acabar com o bloqueio para não perder de novo esse mercado de pouco mais de dez milhões de habitantes e com grande potencial de desenvolvimento.

Cito esses dois exemplos porque são emblemáticos, acontecendo em território que Estados Unidos sempre tiveram como seu próprio quintal. Há inúmeros outros projetos que estão sendo executados por empresas brasileiras no Peru, Equador, Bolívia e outros países americanos bem como em Angola, Namíbia e outros na África.

Esse avanço das prestadoras de serviço brasileiras deve ter irritado profundamente as concorrentes estadunidenses. Soma-se a isso o fato de que o Brasil, recentemente, preteriu os aviões de caça Phanton estadunidenses e comprou 36 Gripen NG da sueca Saab. Isso depois de ter namorado o Sukhoi 350, o incomparável caça russo.

O Brasil já foi um importante exportador de armamento bélico. Perdeu o mercado do Oriente Médio tanto para as armas como para as empresas de engenharia. Como consequência dos maus governos deixou sucatear o parque industrial, mas, tem grande potencial e mantém-se no terceiro ou quarto lugar entre os maiores exportadores de armamento leve.

Vale lembrar que os Estados Unidos gastaram três trilhões de dólares para recuperar os poços de petróleo iraquiano e poder dar trabalho para suas prestadoras de serviço de engenharia na reconstrução do Iraque.

A Doutrina Monroe continua vigente

A auto suficiencia energética dos EUA seguramente não é para toda vida como será ainda o petróleo para milhares de subprodutos que movem a economia de consumo. Para manter escala na produção eles precisam de mercado e num futuro não muito distante necessitarão outra vez de petróleo em grande escala. O petróleo na América Latina e Caribe está mais perto que o perigoso e instável oriente árabe.

Qual o cenário ideal para os estrategistas estadunidenses? Desde Lincoln, passando por Monroe até Obama sonham com estender as fronteiras hoje no Rio Bravo até a Patagônia. Uma América rica em matérias primas e repleta de consumidores. 400 milhões de consumidores: um imenso Panamá.

A única pedra no caminho dos EUA hoje é a China, transformada na fábrica mundial, e colocando sua gente em todas as partes do mundo para comprar matérias primas, vender seus produtos e fazer grandes negócios. E as ofertas chinesas são tentadoras. Argentina acaba de fazer um acordo na área de tecnologia nuclear e espacial.

Tudo isso que está ocorrendo, presença brasileira, expansão chinesa, independência e autonomia boliviana, equatoriana, venezuelana, faz com que os Estados Unidos tenham pressa, e muita pressa para ocupar os lugares que eles julgam de direito, mas que ferem nossa soberania. É isso que nos espera: uma ofensiva do império quase que desesperada no medo de ver ameaçada sua hegemonia. E virão com tudo. Aliás, já estão conspirando. Só não vê quem não quer ou os que torcem por eles.

Nova reversão de expectativas

O terceiro tempo começa com a queda nos preços das commodites e, até certo ponto, do esgotamento do modelo. Era previsível que na falta de um projeto nacional a euforia durasse pouco. É preciso uma nova reversão de expectativas. O comando da economia volta às mãos dos financistas. Outro ciclo de domínio da ciranda financeira com os juros mais altos do mundo atraindo capitais voláteis, isto é, capitais que não produzem, não geram emprego, só renda. Renda que não fica no país.

Aquilo que Brizola qualificava como as “perdas internacionais”, o que se paga de royalties, dividendo e juros somados à sonegação fiscal e evasão ilegal de divisas, geralmente fruto da corrupção, é um dos principais entraves ao desenvolvimento.

A mídia brasileira pouco falou sobre o escândalo do banco britânico-suíço HSBC e deve haver um bom motivo para isso. O International Consortiium of Investigative Jonalists revelou uma lista de 106 mil correntistas de 203 países donos de 100 bilhões de dólares em contas secretas. Destes, em quarto lugar estão 8.667 depositantes brasileiros somando sete bilhões de dólares. Quantos bilhões mais estarão nos demais paraísos fiscais fruto da corrupção endêmica que só agora, e justamente agora, começa a ser revelada? Revelada apenas a ponta do iceberg, é bom que fique bem claro.

Nada menos que 40 usinas de açúcar e álcool estão paralisadas. Foram com muita sede ao pote e a capacidade dos mercados tanto nacional como internacional não dava pra tanto. Falta de planejamento estratégico por parte do governo ou lavagem de dinheiro? Talvez ambas as coisas.

Desde a década de 1950 a indústria automobilística foi colocada como carro chefe para o desenvolvimento da indústria nacional. E continua sendo a mais privilegiada. Só que agora estão com os pátios abarrotados e demitindo pessoal. A indústria automobilística conta hoje com umas 40 marcas no país. Isso não ocorre em nenhum outro país do mundo. Inundaram as cidades de automóveis. Em 2013 bateu o recorde de produção ao lançarem 3.74 milhões de veículos, e também o maior faturamento da história, totalizando 16.5 bilhões de dólares. Só em São Paulo, um milhão de novos carros são licenciados a cada ano. Já não cabem mais e continuam a chegar novas montadoras. Os alemães tem a Mercedes Benz, Volkswagen, e estão chegando a BMW e a Audi. Os suecos tem a Scania e a Volvo; Os italianos a Fiat; os estadunidenses a Ford e a GM/ os franceses a Citroen, Peugeot e Renaut; os japoneses a Nissan, Toyota, Mitsubishi, Honda, Suzuki… Os coreanos a Hyundai e a Kia; os chineses com a Chery e o Jac; os ingleses com Land Rover.

O transporte urbano é ruim, caro e lento pois trafega por ruas congestionadas. Não há hoje no país uma só cidade que não tenha congestionamento, que não esteja entupida de automóveis. Em junho de 2013 mobilizados pela organização Passe Livre manifestações de massa coalharam as ruas de São Paulo e outras cidades em protesto pelo aumento de vinte centavos nas passagens de ônibus. E hoje essas passagens estão ainda mais caras e as mobilizações estão começando a pipocar por toda parte.

Estafa eleitoral

A nova equipe econômica já disse a que veio. O contingenciamento do Orçamento será de 60 a 80 bilhões de reais. Tudo o que terão para gastar em investimento, restos a pagar, quesito e obras é em torno de 75.1 bilhões. O primeiro corte anunciado, de 7.1 bilhões de reais foi precisamente na educação, poucos dias depois da presidenta Dilma Rousseff ter lançado a palavra de ordem “Pátria Educativa” para sua segunda gestão. Como fica a credibilidade?

O pior é que tudo isso acontece em plena transição para o segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff, e se configura como uma estafa eleitoral, difícil de ser digerida pelo eleitor comum que acreditou no discurso da candidata que apontava a caminho oposto ao preconizado pela oposição. E agora é a oposição que comanda?

Então a isso se soma a quebra da confiança nas lideranças que conduzem o governo. Ao mesmo tempo, se vê o partido do governo não conseguir um só membro da mesa diretora da Câmara Federal, não ter a direção de nenhuma Comissão Parlamentar e, pior, entregar a gestão econômica e financeira para os banqueiros.

É, parece mesmo que The Economist tem razão em dizer que o Brasil está no atoleiro e Lula está certo ao puxar a orelha de sua pupila dizendo que ela tem que erguer a cabeça e não dar trégua. Terá ela capacidade de suportar a pressão que virá? Terá ela coragem de enfrentar os agentes do Tio San, como fez Evo Morales na Bolívia? Será ela capaz de democratizar os meios de comunicação para que os sem vozes possam defender a democracia e a soberania nacional?

*Paulo Cannabrava Filho é jornalista e editor de Diálogos do Sul

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Isabel Carmi Trajber.

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