Resistência pelo direito à moradia em Pernambuco

Juliana Câmara, da Action Aid Brasil, especial para o Canal Ibase

Em 2014, a luta para tornar Recife, em Pernambuco, uma cidade mais democrática ganhou projeção nacional e internacional por meio do movimento #OcupeEstelita. Mas a violação do direito à moradia vai muito além da capital, tendo como resposta outras formas de resistência pouco faladas, porém com uma força que merece ser contada. Uma dessas histórias está distante pouco mais de 20 quilômetros do cais que ganhou fama, em uma comunidade de aproximadamente 75 mil habitantes e área de 33 hectares – o equivalente a 33 campos de futebol. Trata-se da comunidade de Passarinho, na divisa entre Recife e Olinda.

Os moradores do local, alguns há mais de 40 anos, estiveram prestes a perder suas casas no mês de novembro de 2014. A ação de despejo estava agendada para o dia 9 de novembro, provocando muita ansiedade, mas o prazo foi estendido dois dias antes, graças à organização da própria comunidade, que conquistou apoio jurídico e político à causa. Para alívio ainda maior, no dia 20 de novembro, o governador de Pernambuco, João Lyra Neto, decretou a área de interesse social, acabando, por ora, com o fantasma da remoção que rondava Passarinho. “O decreto de interesse social significa que agora o autor do processo vai ter que negociar com o Estado. É um primeiro passo para a regularização fundiária. Mas vamos continuar pressionando o governo, porque, se a indenização ao proprietário da área não acontecer em até dois anos, o decreto deixa de valer. Só vamos descansar quando os moradores tiverem o título de posse dos terrenos”, explica Cristhovão Gonçalves, integrante do coletivo Luís Gama de Advocacia Popular, que apoiou os moradores de Passarinho no processo.

Moradora de Passarinho há 40 anos, a dona de casa Flávia de Almeida, de 42 anos, foi uma das que se engajou na resistência para garantir a permanência na comunidade. Ela ficou sabendo da ameaça de remoção por meio das vizinhas que lhe entregaram a cópia de um informe. “Fiquei perplexa, porque a gente mora aqui há tanto tempo e não tem para onde ir. O pouquinho que a gente tem está aqui. Para onde ia? Para a casa de familiares?”, questiona ela, que divide uma pequena casa de alvenaria com o marido, o filho que sofre de distúrbios mentais, a filha, o genro e o neto de 4 anos: “Eu queria que a Justiça olhasse mais para a gente, que é mais pobre e que muitas vezes passa por essa situação de que quem é grande quer tomar o pouco que a gente tem”.

O processo de reintegração de posse foi movido pela empresa Indústria e Comércio Pré-Moldados Nordeste Ltda e existia desde 2003. Com idas e vindas jurídicas, a comunidade só tomou conhecimento da ordem de despejo poucos meses antes da data agendada, sem que qualquer projeto de realocação ou indenização das famílias estivesse previsto. Após o susto, os moradores começaram a se organizar para reivindicar o direito de permanecer na área que ocupavam há décadas. Eles acionaram e conseguiram apoio do Ministério Público Estadual, da Defensoria Pública do Estado e de organizações da sociedade civil que já atuavam na comunidade. E então começou uma corrida contra o tempo para suspender a liminar na justiça e convencer o governo estadual sobre a importância de declarar a área de interesse social.

Além de uma parcela dos moradores ter chegado a Passarinho há mais de 40 anos, a comunidade tem certa estrutura, obtida, inclusive, com investimentos públicos. No terreno reivindicado, há ruas calçadas, comércio, escola pública, uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) e um reservatório de água construído pelo Estado no valor de R$ 2 milhões. Quando visitou a comunidade para uma inspeção, no dia 6 de novembro, três dias antes da data agendada para a reintegração de posse, o juiz José Junior Florentino Santos Mendonça reconheceu a inadequação da ordem de despejo: “Ao realizar inspeção judicial, (…) tive oportunidade de constatar que a área (…) constitui denso núcleo comunitário, com ruas definidas, inúmeras residências, estabelecimentos comerciais e religiosos, onde, a despeito da notória precariedade, convivem famílias e são prestados diversos serviços públicos, como saúde, educação, transporte e fornecimento de energia elétrica”, escreveu na sentença.

No texto, ele determinou que o autor do processo apresentasse, no prazo de um mês, a lista de todos os moradores que ocupavam o terreno reivindicado, o que ainda não havia sido feito, mesmo com a ordem de despejo prestes a ser cumprida. No dia 7 de dezembro, sem que o documento fosse apresentado, a liminar de reintegração de posse foi extinta. Antes disso, no entanto, a comunidade já comemorava a decisão do Governo do Estado de declarar a área de interesse social. “O Estado declarou que seria impossível remover aquelas famílias. Passarinho tem um nível de estrutura que é de um bairro, seria um caos cumprir a decisão. Agora, cabe à Procuradoria Geral do Estado iniciar o processo. É preciso fazer o levantamento da área, de quem é morador, fazer o cadastramento dos mesmos, e discutir o valor do terreno para desapropriação”, explicou Ivan Rodrigues, secretário executivo de Planejamento e Gestão da Casa Civil do Estado de Pernambuco, que coordenou as negociações entre o Estado e os moradores de Passarinho.

A comunidade promete não descansar até ver todo o processo encerrado, com os títulos de posse entregues aos moradores. Mas Passarinho quer também aumento e melhoria da oferta dos serviços públicos. A ameaça de remoção uniu a vizinhança, que continua com um calendário de reuniões para discutir o futuro comum. “Vamos fazer mais protestos em frente à prefeitura e ao governo do estado, para cobrar que o decreto seja cumprido. E outras políticas que, na última reunião que fizemos, definimos como prioridades para a comunidade. Passarinho precisa também de melhor educação, construção de creches e mais transporte público, além de preservação das áreas verdes que ainda estão lá. A comunidade está preocupada com o meio ambiente e entende que é importante prevenir novas ocupações. Já pautamos isso e vamos procurar a prefeitura, que é responsável pela maioria dessas políticas”, contou o líder comunitário Edvaldo Luiz.

De acordo com Edvaldo, os moradores também estão preocupados com uma unidade habitacional que está sendo construída pela prefeitura na região para abrigar de três a quatro mil pessoas, porque o projeto não foi acompanhado de investimentos em serviços públicos. Outra demanda da comunidade é que os títulos de propriedade dos terrenos da área ocupada, quando forem emitidos, saiam também em nome das mulheres de Passarinho, que tiveram um papel de protagonismo no processo de resistência contra a remoção. Foram elas que levaram a luta da comunidade para organizações como a Casa da Mulher do Nordeste (CMN), que desenvolve um trabalho com as moradoras dali há seis anos. A CMN acompanhou e apoiou as reuniões dos moradores com o poder público e passou a incentivar a formação de lideranças comunitárias entre as mulheres. No dia da visita do juiz, as casas de Passarinho exibiam cartazes que reivindicavam o direito à moradia, todos feitos pelas mulheres numa oficina junto à CMN. “Elas eram maioria nas reuniões dos moradores para falar sobre o risco de remoção, embora houvesse só uma mulher na comissão que eles formaram para acompanhar o processo. Elas estão preocupadas, porque costumam ser as mais vulneráveis em situações como essa”, diz Ilka Guedes, da CMN.

As mulheres também têm tido papel de destaque no debate sobre a melhoria da oferta de serviços públicos em Passarinho. Mesmo antes de a notícia sobre a remoção iminente se espalhar, as moradoras se engajaram na campanha Cidades Seguras para as Mulheres, promovida pela organização humanitária ActionAid e que relaciona a falha na oferta de serviços à insegurança de gênero nos espaços urbanos. O objetivo é conseguir o compromisso dos gestores públicos na melhoria de iluminação, transporte e segurança, por exemplo, a fim de prevenir a ocorrência de agressões, assédios e estupros nas ruas das cidades. Em julho, um grupo de mulheres realizou um lanternaço em Passarinho e caminhou pelas ruas mais escuras da comunidade segurando lanternas, denunciando que aqueles eram pontos de insegurança. (Veja aqui o video).

Outro apoio à luta dos moradores de Passarinho foi do grupo Direitos Urbanos, muito atuante na resistência do #OcupeEstelita, e que ganhou o noticiário internacional e nacional em junho, após uma arbitrária tentativa de desocupação do terreno realizada pela Polícia Militar de Pernambuco, ordenada pelo governador João Lyra, o mesmo que decretou Passarinho área de interesse público. O grupo tentou reforçar a estratégia de visibilidade da ameaça enfrentada pela comunidade vizinha a Olinda, que chegou a receber atenção da mídia local e reverberou nas mídias sociais.

“A vitória de Passarinho é emblemática, pois a função social da propriedade deve prevalecer. Mostrou que é possível que o Judiciário e o Executivo levem em consideração os clamores e a realidade social”, comenta Rud Rafael, integrante do Direitos Urbanos e do Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec), que também atua em Passarinho.

Passarinho é dividido em duas áreas, cortadas por um rio que recebe o nome da comunidade, afluente do rio Beberibe. A ocupação ganhou força depois que o Governo do Estado comprou e loteou um dos lados para receber moradores de áreas de risco do Recife nos anos 1980. O outro lado, uma área de mata, começou a ser ocupado por famílias na mesma época. Mas o processo só ganhou força nos últimos oito anos, quando a comunidade passou a se estruturar e a receber investimentos públicos, ainda que insuficientes. Agora, depois do susto do risco de perder suas casas e da percepção do poder da organização comunitária, os moradores não querem deixar passar a oportunidade de tornar Passarinho não só o lugar onde vivem, mas o lugar onde vivem com qualidade e dignidade.

Foto: Resistência em Passarinho, PE. Foto de Márcio Santos / Divulgação.

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