Boçais!, por Roberto Tardelli

Por Roberto Tardelli*, em Justificando

Preciso admitir. Deu no meu limite e não consigo mais ver com naturalidade ou respeito e quero que vão para o raio que os parta, com o diabo que os carregue, para a puta que os pariu todos aqueles que festejaram, invejaram, concordaram, compreenderam, justificaram, endeusaram, suspiraram ver um brasileiro ser morto, executado a tiros nas Indonésia. Eu sinto que estamos enlouquecendo completamente e nossa sociedade brasileira se dá bem obrigado nesse pântano de ódio em que nos afundamos mais e mais.

A pena de morte, seja resultado de um processo garantista ou não, afinal quem de nós calcula como seja a lei processual penal indonésia?, é sempre uma execução fria, asséptica e terrível, tão terrível que sequer seus executores, aqueles que compõem o pelotão de fuzilamento, podem saber de que rifle partiu a bala que matou o condenado. Certamente isso se dá porque na soma das experiências de execução, muitos devem ter enlouquecido, suicidado ou, mais simplesmente, bandeado para o crime de mala e cuia. Mesmo aquele que compõe esse pelotão maldito sabe que seu tiro é covarde. Ele lá está para cumprir a lei, ele lá está para cumprir uma lei horrorosa que pretende garantir a vida, garantindo a morte. A execução da pena capital se cobre de vergonha, esconde as balas verdadeiras entre os atiradores, permite últimos desejos. Quem a decreta, também sabe que decretou algo que cobrirá de infâmia aquele que cumprir o comando estatal para matar.

Vi estarrecido que burocratas, militantes do direito, operadores, pois não?, saíram a justificar a gravidade da pena pela gravidade do crime. Se visse alguém estúpido, profundamente estúpido, fazê-lo, até que me arriscaria a um momento de indulgência, afinal, à violência da ignorância outras violências hão sempre de se sobrepor. Mas, ouvir isso de gente responsável, francamente, é insuportável, é intolerável. Quero que todos esses vão para o inferno, com passagem apenas de ida.

Defender a pena de morte teoricamente era tudo o que tínhamos visto até dias atrás, mas, quando o regozijo pela execução da pena, quando xingamentos vulgares à presidenta da república por ter pedido em favor do sentenciado, quando nos demos conta que estávamos felizes por ter sido feita a Justiça, algo de podre nos passou a feder. Alguma coisa gutural, alguma coisa que nos fez sair a buscar estatísticas e descobrir que na Indonésia o índice de homicídios é baixo e somente pode ser baixo porque eles têm a lei dos sonhos. É preciso uma insensatez esquizóide ou uma canalhice exemplar para associar, com o mínimo de seriedade, uma coisa à outra. Porém, nosso maucaratismo jurídico logo acendeu a primeira vela: a lei brasileira é branda e a lei indonésia é austera. Por ser austera, lá há menos crimes; por ser branda, isso aqui, Hospício chamado Brasil, é uma zona. Defender isso é abdicar da inteligência ou da boa-fé, mais provavelmente da duas.

É uma falácia perigosa afirmar que, no-Brasil-a-pena-de-morte-é-aplicada-pela-polícia-todos-os-dias… Esse chavão esconde diferenças que são fundamentais para que compreendamos a coisa. Polícia que mata, como a nossa tem matado, é uma polícia que comete assassinatos criminosos e somente os comete porque se sente à vontade para matar indiscriminadamente. Para esses assassinos, a Lei. Para essa diretriz, que criou inimigos para serem mortos na ruas, a desmilitarização, como início de um processo de saneamento ideológico.

A pena de morte é a ação do Estado, aparentemente legitimada por uma lei que a autorize. É a Lei. Para uma lei assim, nem a democracia parece ser remédio, porque Nosso Grande Irmão do Norte a tem principalmente para seus negros mais temíveis. Para combater uma Lei assim, é preciso que se tenha civilidade e noções básicas, elementares, de igualdade humana, sob quaisquer tons de pele, deuses, sexo ou sexualidade. A pena de morte é o ponto ideal da Intolerância.

Por isso, nossa amarga frustração: somos Intolerantes, racistas, sectários. Odiamos os pretos e odiamos mais ainda aqueles que não sabem seu lugar, odiamos gays, embora tentemos rir deles, odiamos religiões não ocidentais, odiamos nordestinos, odiamos leis de cotas, odiamos programas de transferências de rendas, odiamos, acima de tudo isso, o preso comum. Tomamos como afronta, por exemplo, o preso se alimentar e não pagar por isso.  Temos tudo isso, mas não temos a pena de morte. Nossa vingança não se completa.

Por isso, quando veio a notícia que a execução foi cumprida, muitos de nós gritaram GOL!

Eu faço votos para os que festejaram, invejaram, concordaram, compreenderam, justificaram, endeusaram, suspiraram que se arrependam. Não precisam fazê-lo publicamente; façam-no silenciosos, na miséria espiritual de cada um, no aconchego de seu foro íntimo, mas, se arrependam ou assumam de vez o que são.

Boçais.

* Roberto Tardelli é Procurador de Justiça aposentado (1984/2014), onde atuou em casos como de Suzane Von Richthofen. Atualmente é advogado da banca Tardelli, Giacon e Conway Advogados, Conselheiro Editorial do Portal Justificando.com e Presidente de Honra do Movimento de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente.

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