Graças à nossa omissão, nas enquetes da Câmara mais de 72 por cento apoiam os autos de resistência

Tania Pacheco – Combate Racismo Ambiental

Vez por outra recebo uma mensagem informando que “está no ar nova enquete da Câmara dos Deputados” e, se sigo o link, em geral me deparo com alguma aberração. Se não é a proposta em si, são os votos e os comentários (bem no pior estilo redes sociais) que me assustam. E foi essa segunda hipótese que se repetiu hoje mais uma vez.

A enquete em questão é sobre a violência policial. Está em discussão o Projeto de Lei 4471/12, apresentado pelos deputados Paulo Teixeira (PT-SP), Fábio Trad (PMDB-MS), Protógenes (PCdoB-SP) e Miro Teixeira (Pros-RJ), sobre os chamados “autos de resistência”. Pelo projeto, sempre que a ação policial resultar em lesão corporal ou morte, será instaurado inquérito, o autor poderá ser preso em flagrante, e Ministério Público, Defensoria Pública, órgão correcional competente e Ouvidoria deverão ser comunicados.

O projeto está pronto para ser votado. Já mereceu o apoio de mães e familiares de pessoas mortas por policiais e de representantes do movimento negro, que levaram a Brasília abaixo-assinado com mais de 30 mil assinaturas favoráveis ao PL, denunciando a execução sumária de jovens negros das comunidades, principalmente. Como diz Paulo Teixeira, um dos autores do projeto,

“Os estudos demonstram que 60% desses autos de resistência são execuções. Não há resistência à ação policial. Mas essas execuções são como se tivesse havido resistência, que eles chamam de resistência seguida de morte. Estamos pedindo que elas sejam investigadas, ou seja, toda atividade policial, quando levar à morte do cidadão, tem que ser investigada”.

Acontece que, como pode ser visto na ilustração acima, quase três quartos das pessoas que deram suas opiniões até o momento seguem cuidadosamente a cartilha da ‘bancada da bala’. Talvez nem façam parte da turma que gosta de repetir que “bandido bom é bandido morto”, mas aparentemente optam por ignorar que não há pena de morte no País. Que todos têm direito à vida e a um julgamento decente, inclusive os “bandidos”, morem eles em favelas, na Vieira Souto ou nos Jardins. E, principalmente, que as mais diversas pesquisas e estatísticas demonstram que a maioria das vítimas dos chamados ‘autos de resistência’ têm raça e cor previamente definidas.

Não pretendo em absoluto escrever mais um texto sobre a necessidade da desmilitarização das polícias, o legado da ditadura civil-militar quanto a essa questão ou o racismo presente no momento em que classificam quem deve ser enquadrado como suspeito a ser parado, rendido, revistado, humilhado e, se duvidar, sumariamente preso, muitas vezes espancado e/ou torturado, e, até mesmo, morto e ‘desaparecido’, como mais um Amarildo na nossa História. A questão aqui envolve brevemente as tais ‘enquetes’ e as consequências de nos omitirmos quanto a elas.

Se os resultados acima podem fornecer ‘munição’ para os bolsonaros da vida afirmarem que mais de 72% da população brasileira está do lado de quem atira primeiro para depois descobrir se de fato tinha motivos para fazê-lo, há ainda outras situações e exemplos nas quais as enquetes são igualmente usadas para legitimar o desrespeito aos direitos humanos e à cidadania.

Uma outra pesquisa de opinião está ativa neste instante no site da Câmara, desta vez envolvendo o fim do auxílio reclusão. Se considerássemos os votos dados até o momento (1.575.277), ela estaria facilmente aprovada. Afinal, são 1.506.001 votos (95,6%) favoráveis, contra 61.076 contrários (3.88%) e 8.200 (0,52%) “sem opinião formada”. Seria uma vitória expressiva para a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 304/13, da deputada Antônia Lúcia (PSC-AC). Mas afinal do quê estamos falando?

O chamado auxílio-reclusão foi instituído para garantir que os familiares de trabalhadores presos tenham como sobreviver enquanto eles cumprem suas penas. Não é absolutamente um “presente para marginais”, como querem alguns, mas uma garantia à qual as famílias – que afinal não cometeram qualquer delito – têm direito na medida em que a pessoa cumprindo sentença tenha contribuído regularmente para a Previdência Social. Mais: o auxílio-reclusão é calculado exatamente como seria feito para o auxílio-doença, tendo por base a média das contribuições do trabalhador e somente quando o resultado desse cálculo é igual ou inferior a R$ 971,78, respeitando a Constituição e os direitos dos trabalhadores contribuintes de baixa renda.

Como ficaria a situação se a PEC 304/13 fosse aprovada? Simples: o benefício passaria a ser pago à vítima (durante o período em que eventualmente ficasse afastada de seu trabalho e caso não haja pagamento de benefício pelo INPS) ou aos familiares (como pensão a ser posteriormente regulamentada).  A deputada autora alega que o fato de saber que sua família não mais estaria amparada pelo auxílio-reclusão funcionaria como um fator que dissuadiria a pessoa de praticar o delito. Ainda que supondo que isso funcionasse, baseado em qual artigo do Código Penal seria a família condenada junto com o preso, pois afinal é disso que se trata?

Corroborando a tendência da votação acima, uma outra está também ativa no site: a que envolve a proposta da fusão das polícias civil e militar e a criação de uma polícia única e desmilitarizada. Até o momento, ela recebeu um total de 205.032 votos. Deles, 64,3% (131.837 votos) querem continuar como estamos hoje; 35,1% (71.970 votos) desejam a desmilitarização; e 0,6% (1.225 votos) não opinaram.

Acho que é desnecessário seguir adiante, mas gostaria de citar um contra-exemplo antes de encerrar, para deixar claro que depende de nós impedir que o resultado dessas enquetes venham a ser usados para a aprovação de leis que ferem os direitos humanos.

No início de fevereiro de 2014, o deputado Marcos Feliciano lançou uma campanha nas redes sociais, pedindo votos para uma enquete sobre qual seria, afinal, o nosso conceito de núcleo familiar. “Você concorda com a definição de família como núcleo formado a partir da união entre homem e mulher, prevista no projeto que cria o Estatuto da Família?” – era a pergunta proposta. Em pouco tempo ele mostrou seu poder de aglutinação, com os votos SIM explodindo e levando a crer que todas as conquistas quanto às relações homoafetivas, inclusive o reconhecimento pelo STF, três anos antes, estariam sendo questionadas.

O presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara não contava, entretanto, com a capacidade de resposta das mesmas redes sociais. Em alguma horas, milhares de pessoas foram avisadas e prontamente começaram a se conectar e a fazer valer seus direitos, votando NÃO. Em poucos dias, o resultado mudava, embora com margem apertada de diferença. Portais como o IG fizeram reportagens a respeito, inclusive. Na matéria Enquete no site da Câmara sobre ‘o que é família’ gera polêmica e bate recorde, o IG informava que 558.471 haviam respondido à pergunta até o dia 24 de março, e o resultado indicava 50.83% NÃO; 48.78 % SIM; e 0.39 % sem opinião.

Infelizmente, o final ainda não chegou e, se fosse hoje, o resultado não seria feliz. Possivelmente por conta da virada comemorada antes do tempo, as pessoas comprometidas com os direitos humanos talvez tenham esquecido a questão. Tanto que hoje, com um número de votos total cerca de nove vezes maior – 4.543.108, que estabelecem um recorde absoluto-, quem está na frente é a turma de Feliciano, com 50,59% (2.298.194 votos). O NÃO tem 49,1%, (ou 2.230.664 votos); e os sem opinião, 0,31% (14.250 votos).

Tudo isso mostra que devemos estar atent@s também a essa questão das pesquisas de opinião. Embora não elas tenham valor objetivo em termos de tomada de decisão, sabemos muito bem que há outras coisas em jogo, como até mesmo a concepção de mundo que desejamos prevaleça neste País. É de contra-hegemonia que estamos falando, e ela é construída das mais diferentes formas. Via enquetes, inclusive.

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A lista de todas as enquetes ativas na Câmara pode ser acessada AQUI.

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