Utilização indiscriminada: Suspensão de liminar tem sido usada para violar direitos fundamentais

“Tal ocorre de forma tão sistemática que já há uma assessoria da Advocacia-Geral da União junto aos tribunais, só para despachar suspensões de liminar. É possível hoje dizer, sem medo de errar, que os principais empreendimentos do país somente vão adiante, apesar de inúmeras irregularidades, graças ao instituto, que vem suspendendo liminares impeditivas proferidas pelo judiciário”

Por Felipe Almeida Bogado Leite* e Leandro Mitidieri Figueiredo**, em Consultor Jurídico

No dia 12 de dezembro de 2013 caiu mais uma medida liminar que impedia o prosseguimento da construção de uma hidrelétrica na Amazônia Legal. Dessa vez, além do impacto ambiental, da ausência de participação da população afetada e da não realização de consulta às comunidades tradicionais atingidas, outro fundamento da medida liminar derrubada chamava a atenção: a inexistência do devido estudo do componente indígena, tendo em conta a presença de índios isolados na área impactada pela Usina Hidrelétrica São Manoel, a ser construída na bacia do rio Teles Pires, na divisa entre Mato Grosso e Pará.

Existem hoje no Brasil 68 referências de grupos de índios isolados, vigorando atualmente não mais a ideia de atraí-los, mas de protegê-los, por meio das chamadas frentes de proteção etnoambiental. Mas isso não impediu que fosse permitida a continuidade da instalação dessa hidrelétrica, que faz parte de um grupo de pelo menos sete outras.

A notícia parece um déjà vu de várias outras que pululam os jornais, mas é de se notar um fenômeno muito grave que vem cada vez mais se consagrando em nosso sistema judiciário: a utilização indiscriminada do instrumento da suspensão de liminar, por meio do qual os presidentes de tribunais suspendem medidas liminares concedidas por juízes constitucionalmente competentes sobre a causa e mais próximos dos fatos.

Longe de ser usada excepcionalmente, a suspensão de liminar vem sendo o principal instrumento para o governo implantar sua política desenvolvimentista de grandes empreendimentos, todos altamente questionados por serem executados com violação de direitos fundamentais. Nos últimos anos o governo fez prevalecer seus projetos fazendo uso desse instrumento extraordinário em pelo menos 10 demandas, só envolvendo grandes empreendimentos na bacia dos rios Teles Pires e Tapajós, na Amazônia Legal(1). Isso sem contar com as suspensões deferidas nas ações que questionam irregularidades das usinas de Santo Antônio e Jirau, em Rondônia, e Belo Monte, no Pará. Tal ocorre de forma tão sistemática que já há uma assessoria da Advocacia-Geral da União junto aos tribunais, só para despachar suspensões de liminar.

É possível hoje dizer, sem medo de errar, que os principais empreendimentos do país somente vão adiante, apesar de inúmeras irregularidades, graças ao instituto, que vem suspendendo liminares impeditivas proferidas pelo judiciário.

Mas as demandas às vezes seguem seu devido processo, com a interposição dos recursos tradicionais, julgados pelos órgãos naturais, sem serem objeto de suspensões de liminar. Exemplo disso é a confirmação da multa diária de R$ 500 mil à empresa Norte Energia, por descumprimento de um acordo firmado com indígenas e ribeirinhos, sobre as compensações relativas à construção da hidrelétrica de Belo Monte. Ou a determinação, do dia 16 de dezembro de 2013, relativa também a Belo Monte, para que cumpra as obrigações constantes das condicionantes da licença ambiental prévia, impedindo o IBAMA de emitir licença de instalação e o BNDES de liberar qualquer recurso financeiro enquanto tais condicionantes não forem integralmente cumpridas.

Por outro lado, quando se elege a via de exceção do pedido de suspensão de liminar, a prática mostra que a história é outra e as decisões obstaculizando os grandes empreendimentos caem com mais facilidade. Isso talvez porque, como expressamente consignado na jurisprudência dos tribunais, basta a alegação de que a decisão tenha aptidão para causar lesão à ordem, à saúde, à segurança ou à economia públicas para a suspensão ser concedida, sendo os eventuais erros de mérito, em suposta ofensa à ordem jurídica, resolvidos nas vias recursais ordinárias, no plano do juízo natural.

E os casos demonstram que a administração pública sequer precisa fazer prova do prejuízo que está alegando: basta que argumente que há tal prejuízo, qualquer que seja a natureza, dentro daquele genérico rol elencado na lei, que poderá haver a suspensão, já que há a presunção de legalidade e veracidade nas assertivas da fazenda pública.

Registre-se que, quando o pedido de suspensão de liminar é feito para assegurar o planejamento e o cronograma do setor elétrico, impressiona a celeridade com que ele é apreciado e, via de regra, deferido. Exemplo disso foi a suspensão deferida nos autos do processo 013839-40.2013.4.01.3600, em que o juiz federal da seção judiciária de Mato Grosso deferiu, no dia 26 de setembro de 2013, liminar postulada pelo Ministério Público Federal, e no mesmo dia, poucas horas depois, o vice-presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, no exercício da Presidência, deferiu o pedido de suspensão da decisão proferida pelo juiz de primeiro grau.

Por outro lado, quando se postula a suspensão de liminar para garantir, por exemplo, o direito reconhecido dos povos indígenas à preservação de sua cultura e tradições históricas ou, quando menos, ao direito de se verem consultados sobre empreendimentos que possam lhes afetar, a mesma sorte não acompanha os precedentes. Exemplo é o pedido de suspensão feito pelo Procurador Geral da República ao Presidente do Supremo Tribunal Federal (SL 797), contra decisão do TRF-1.

Neste caso, após ajuizamento de ação civil pública em que o MPF buscava garantir a proteção ao povo indígena denominado Isolado Apiaká, o juízo de primeiro grau concedeu a antecipação dos efeitos da tutela, suspendendo o licenciamento da UHE São Manoel. Então, a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) postulou a suspensão da decisão liminar, sendo o pedido deferido pelo TRF-1, restabelecendo, dessa forma, o processo de licenciamento da usina. O PGR, então, em 11 de julho de 2014, requereu ao presidente do STF a suspensão desta última decisão, e até hoje, passados quase 5 meses, o pedido ainda não foi apreciado.

E não é só a discrepância na celeridade dos pedidos que chama a atenção. O próprio instituto, da forma como hoje é admitido, causa perplexidades. Talvez a maior delas esteja no fato de que a suspensão, quando deferida, prevalece até o trânsito em julgado da ação correspondente. É possível, assim, que uma decisão de suspensão proferida monocraticamente pelo presidente de um tribunal se sobreponha a decisões de mérito de órgãos colegiados do próprio tribunal e até mesmo dos Tribunais Superiores.

As razões e os argumentos para se sustentar a inconstitucionalidade do instituto são inúmeras. Mas, ainda que não o fossem, bastaria visualizar o histórico de seu manejo para se perceber que ele tem servido a possibilitar a continuidade de empreendimentos que violam direitos fundamentais de povos indígenas e populações tradicionais, além de normas de licenciamento ambiental.

Por fim, fica a reprodução das eloquentes palavras do Desembargador Federal Antônio Souza Prudente, segundo o qual:

A experiência forense nos tem revelado, com manifesta frequência, que o tempo médio de validade de uma decisão judicial, proferida por um Juízo singular de vara ambiental, amparada pela supremacia do interesse público em defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado, equivale, apenas, ao tempo de que dispõe o Presidente de um Tribunal de Apelação para anular os seus efeitos, através do autoritário procedimento de suspensão de segurança, sob o pretexto de preservar o mesmo interesse público, que serviu de fundamento para aquela decisão monocrática, cercada de precaução e abusivamente cassada. Sem a urgente correção desses desvios procedimentais, as varas ambientais não cumprirão sua nobre missão constitucional, nem poderão atingir seus objetivos legalmente previstos, em busca do progresso ecológico e do desenvolvimento sustentável, neste país, com reflexos difusos na vida do planeta.”(2)


[1]  Processo 6910-50.2011.4.01.3603: Ação civil pública ajuizada em razão da ausência de tradução do EIA-RIMA da UHE São Manoel para línguas indígenas, pleiteando a suspensão das audiências públicas. Liminar deferida em parte, suspendendo as audiências públicas. Suspensão de liminar concedida pelo presidente do TRF1. Sentença julgando parcialmente procedentes os pedidos, com eficácia suspensa em razão da suspensão de liminar anterior, que, segundo a lei, perdura até o trânsito em julgado.

Processo 013839-40.2013.4.01.3600: Ação civil pública ajuizada em razão de vício no EIA-RIMA da UHE São Manoel (estudo do componente indígena incompleto), pleiteando a suspensão das audiências públicas. Liminar deferida suspendendo as audiências até a confecção do ECI. Suspensão de liminar concedida pelo presidente do TRF1.

Processo 17765-29.2013.4.01.3600: Cautelar inominada, requerendo a suspensão do leilão de energia que incluiria da UHE São Manoel, em razão de irregularidade no EIA-RIMA, consistente na incompletude do estudo do componente indígena. Liminar deferida, suspendendo o leilão. Suspensão de liminar concedida pelo presidente do TRF1.

Processo 017643-16.2013.4.01.3600: Ação civil pública ajuizada em razão dos impactos irreversíveis sobe os povos indígenas em isolamento voluntário provocados pela UHE São Manoel. Liminar deferida para suspender o licenciamento. Suspensão de liminar concedida pelo presidente do TRF1.

Processo 014123-48.2013.4.01.3600: Ação civil pública ajuizada em razão da ausência de consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas e populações tradicionais, quanto à UHE São Manoel. Liminar deferida, suspendendo o licenciamento. Suspensão de liminar concedida pelo presidente do TRF1.

Processo 003883-98.2012.4.01.3902: Ação civil pública ajuizada em razão da ausência de consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas e populações tradicionais, quanto à UHE São Luis do Tapajós. Liminar deferida parcialmente. Agravo de instrumento do MPF com vistas a impedir a realização de estudos nas terras indígenas antes da realização da consulta. Liminar deferida pelo desembargador relator no TRF1. Suspensão de liminar concedida pelo presidente do STJ.

Processo 7786-39.2010.4.01.3603: Ação civil pública ajuizada em razão do vício no licenciamento das UHEs Sinop, Colíder e Magessi, realizado pelo órgão estadual de meio ambiente de Mato Grosso. Liminar deferida determinando o licenciamento federal das UHEs. Suspensão de liminar concedida pelo presidente do TRF1.

Processo 33146-55.2010.4.01.3900: Ação civil pública ajuizada em razão de irregularidades diversas no EIA-RIMA da UHE Teles Pires. Liminar suspendendo o licenciamento deferida. Suspensão de liminar concedida pelo presidente do TRF1.

Processo 3947-44.2012.4.01.3600: Ação civil pública ajuizada em razão da ausência de consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas e populações tradicionais, quanto à UHE Teles Pires. Liminar deferida, anulando a licença de instalação e suspendendo o licenciamento. Suspensão de liminar concedida pelo presidente do TRF1.

Processo 005891-81.2012.4.01.3600: Ação civil pública ajuizada em razão de vício no EIA-RIMA da UHE Teles Pires (estudo do componente indígena incompleto). Sentença extinguindo sem exame do mérito por litispendência com a ACP 3947-44.2012.4.01.3600. Apelação do MPF. Decisão do TRF1, afastando a litispendência e anulando a LI por ausência de componente indígena. Suspensão de liminar concedida pelo presidente do STF.

(2) PRUDENTE, Antônio Souza. A missão constitucional do Poder Judiciário Republicano na defesa do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável. Revista de Direito Ambiental – RDA, ano 17, 66, Abril-Junho, 2012. RT, p. 99.


*Felipe Almeida Bogado Leite é procurador da República, especialista em Direito pela Escola da Magistratura do Rio de Janeiro (EMERJ).

**Leandro Mitidieri Figueiredo é procurador da República, especialista em Direito Constitucional pela Universidade de Pisa, especialista em Direito Público pela UnB, coordenador do GT Regularização Fundiária de Unidades de Conservação da 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal.

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