2015: sabor de luta, por Antonio Claret Fernandes

Antonio Claret Fernandes*, para Combate Racismo Ambiental

Sofia está sem fazer nada, no Divino Paraíso. Ali não é o céu, mas se parece com um pedaço dele. O nome exótico vem do dono da Casa de Encontro aos redores do Distrito Federal, a quem chamam de Senhor Divino. O local é aconchegante, com alimentação farta e saudável, junto a uma pequena floresta, ambiente propício ao estudo e reflexão.

Seu pensamento voa a Belo Monte. Ela viu notícia do Estadão (29/12/14) sobre a choradeira da Norte Energia para safar-se de responsabilidade pelo atraso da barragem, prevista para entrar em operação em fevereiro de 2015 e, agora, adiada para fevereiro de 2016. Empresa e Governo se culpam mutuamente. Mas se a dona da hidrelétrica não conseguir convencer a Aneel, terá que desembolsar 370 milhões de reais/mês para comprar energia e garantir a entrega do que não produziu. Sofia ri sozinha, pois sente ter um dedinho das organizações populares nesse ‘atraso’.

Andando pela área, ela descobre a jabuticaba, três pés, bem ao lado do portão de entrada, atrás do refeitório, e fica à espreita. Na primeira oportunidade, intervalo do almoço, enquanto a maioria está no sono militante, Sofia segue até lá para o assalto. Estão carregados! Experimenta uma e outra. Não fazem parte do orçamento, mas não há de ser problema, pensa. Um dos pés, mais perto do portão, é das mais doces. Com as chuvas daqueles últimos dias na redondeza de Brasília, afinaram a casca, ficando macias e especialmente deliciosas.

Entre uma jabuticaba e outra, Sofia degusta, também, a conjuntura. O mar não está pra peixe pequeno, só Tubarão. Colega seu relata que a assistência à Saúde em Brasil Novo, cidade atingida por Belo Monte, está no CTI, com o único hospital fechado, o que agrava ainda mais a situação em Altamira, que já é um caos. Por outro lado, experiência malfadada do PDRS Xingu poderá fazer parte da tática de implantação de barragem no Tapajós, uma ‘distração’ boa para camuflar conflitos e quebrar resistência, pois coloca várias organizações oportunistas ou inocentes como cães a disputar os ossos enquanto empresas e governos barram o rio.

Mas as piabinhas e lambaris seguem firmes e, quando se juntam, assustam o Tubarão. O Acampamento Novo Horizonte comemora, com bolo de aniversário, dois anos de luta e conquistas no dia 6 de Janeiro de 2015. No Jatobá, militantes continuam fazendo o trabalho cotidiano, árduo e eficaz de organização de grupos de base. Em Vitória do Xingu, famílias ocupam lote abandonado na PA 415, no dia 5/12, e continuam resistindo. A partir de São Paulo, reiniciam-se movimentações semelhantes às de junho do ano passado, com manifestação realizada no dia 9 de janeiro e outra já marcada para a próxima sexta-feira.

No Planalto, há muita coisa difícil de engolir, como os caroços da jabuticaba, que Sofia cospe fora.

A eleição não termina, a prorrogação segue acirrada. Não serão dias fáceis em 2015. A ultra direita sai empolgada da urna, mostra a cara na rua, pede o impeachement da Presidenta, grita pelo retorno da ditadura. Haveria, em todo o Brasil, mais de mil ‘partidos militares’ à espera de ambiente propício para seu registro, abrindo caminho, assim, para um golpe branco, como em Honduras e Paraguai.

Verdade que as manifestações pró-ditadura reuniram pouca gente. Mas vale a observação de Eliane Brum, em El País: “400 não é pouco. Um é muito”.

No momento, um grito ressoa no ar: ‘eu sou Charlie’, em alusão ao Jornal satírico francês Charlie Hebdo, cuja sede foi atacada no dia 7/01, em Paris, com mais de uma dezena de vítimas fatais. Ação absurda e condenável! Mas toda moeda tem o outro lado, que a mídia não mostra: 10% da população da França são mulçumanos, 6,2 milhões de pessoas, que vivem agredidas nos seus direitos e marginalizadas, cidadãos de segunda classe. E ninguém grita ‘eu sou mulçumano!’. Tanto o fuzil quanto a caneta têm poder de matar, mas repito: em qualquer dos casos, o terrorismo é condenável!

No Brasil, a mídia capitalista segue, sem escrúpulo. Lembra o Lobo que, faminto, resolve acusar o Cordeiro de estar sujando sua água só para devorá-lo. Só isso! Ainda que o animalzinho esteja no riacho abaixo. É assim! Arranja-se uma desculpa qualquer, cria-se um pé de briga, derruba-se o Presidente – seja lá quem for! -, convocam-se novas eleições e pronto! Esse é o golpe branco, via democracia.

O conservadorismo ganha campo; cresce seu poder de fogo diante de um governo com avanços em programas sociais, mas ineficaz na organização do povo. Quantos beneficiados pela direita desenvolvimentista votam na ultra direita e torcem por ela!

 A corrupção, historicamente bandeira de luta da esquerda, é apropriada pela classe dominante, escondendo, inclusive, o fato de que o sistema capitalista, em sua gênese, é corrupto e corruptor, pois vive da exploração. Como se diz: ‘o roubo não se dá no dia em que o bandido entra no banco de arma na mão e anuncia o assalto, o roubo se dá no dia da fundação do banco’.

A opção por Dilma para um período de mais quatro anos pode comparar-se a uma pessoa que, fugindo do inferno, corre para o purgatório, pois sabe que, por ora, não consegue o céu. Mas de repente descobre que, ao contrário da teologia clássica, purgatório não é garantia de salvação. A corda bamba balança que balança, o risco do inferno ainda mais à direita é real, o Brasil pode sofrer retrocesso. A saída de um purgatório chamuscado sem torrar no fogaréu está, mais uma vez, na mão do povo organizado.

A composição dos ministérios atuais (39) segue, em geral, comida requentada, com o argumento da governabilidade pelo acordo e acomodação de interesses partidários movidos por interesses econômicos.

O nome de Kátia Abreu, rejeitada até entre alguns de seus pares, fugiria a essa receita. Ela teria chegado ao status de chefe do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento pela amizade pessoal com a Presidenta, uma relação de confiança gestada particularmente quando Dilma lutava contra um Câncer. Pode ser! De toda forma, sua indicação não é novidade.  A moeda de troca do desenvolvimentismo dos últimos doze anos, que vem garantindo o crescimento do PIB brasileiro, que por sua vez garante o aumento real do salário mínimo e os programas sociais é, justamente, a exploração dos bens naturais e do trabalho da classe trabalhadora. Isso significa mais soja, mais mineração, mais barragem à custa de menos direitos para atingidos, operários e povo.

 Gilberto Carvalho, ex-ministro da Secretaria Geral da União, faz uma diferenciação entre escolha de ministros e ‘atitudes de governo’, dando a entender que é possível avançar combinando ministros da classe dominante e aliança com segmentos populares organizados.

Aqui não vale a postura à Tome: ver para crer! A conjuntura não tá pra isso! O momento é desafiante, direitos historicamente conquistados pela classe trabalhadora, pelos indígenas, correm risco, por isso é preciso crer; crer na organização do povo, investir na unidade de classe, avançar na força popular para não retroceder nem um passo.  Governos sinalizam para um lado ou para outra, mas o povo organizado pode dar o rumo. Isso não relativiza a importância tática de qualquer governo, apenas deixa a última palavra, no limite do limite, à força popular. Sem isso a esperança se esvai.

Mas é preciso dizer: não é coisa boba indicar Kátia Abreu, ícone do agronegócio, para o Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Só falta agora ficar o bate-boca entre ela e Patrus Ananias, do MDA, com a Reforma Agrária parada. Uma raposa, ainda que fosse apenas uma, ainda que fosse por uma noite, pode fazer um mal imenso. É preciso sempre lembrar que, no apetite, raposas comem galinhas.

Quanto ao ‘novo’ Congresso Nacional, cujos membros foram eleitos no dia 5/10/2014, já ganhou até apelido, revelado em Ravena – Sabará, em encontro de padres políticos, no dia 15/12/14: BBBA. A sigla remete aos financiadores de suas campanhas. O primeiro ‘B’ é da bala, o poderio da indústria bélica. O segundo ‘B’ é da bola, a máfia que manda no futebol. O terceiro ‘B’ é da bíblia, de viés fundamentalista. E o ‘A’, claro, é do agronegócio, que está por cima da carne seca.

O relógio dá catorze horas. Termina o intervalo, e todos vão rumo à plenária, um local redondo, à esquerda da chegada da Casa de Encontro Divino Paraíso. Sofia, quase mecanicamente, vai junto, sentindo o gosto amargo da conjuntura, ainda com a língua doce do sabor das jabuticabas.

Padre missionário na Prelazia do Xingu e militante do MAB.

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