Floresta 
negra: A experiência e os impactos da escravidão africana na Região Amazônica

Por Patrícia Melo Sampaio*, em Carta Fundamental

Quando se fala sobre a presença negra na Amazônia é frequente ver o espanto das pessoas. Ainda hoje, especialmente fora da região, é comum ouvir a pergunta: “Mas, afinal, existiu escravidão na Amazônia?”

Podemos começar respondendo que a experiência da escravidão africana também marcou a trajetória da parte norte da colônia portuguesa na América. Em decorrência disso, hoje a presença negra na Amazônia é inegável, com enorme impacto na vida da região, marcando sua história, suas formas de comer, vestir, amar, dançar, cantar, rezar, trabalhar, juntamente com todas aquelas heranças intangíveis que as pessoas levam na pele, nos olhos e na alma.

São inúmeros os sinais dessa presença. Existem hoje 406 comunidades quilombolas nos estados do Amapá, Amazonas, Maranhão e Pará. Os dados são da Fundação Cultural Palmares, entidade do governo federal responsável pela certificação dessas comunidades, etapa necessária para o reconhecimento de suas garantias constitucionais e, especialmente, o direito às terras em que vivem. Em todo o Brasil, são cerca de 2 mil comunidades já certificadas.

Agora, pergunta-se: se a presença negra na Amazônia é tão relevante, por que sabemos tão pouco sobre ela? Para começar, é preciso lembrar que, durante muito tempo, boa parte da historiografia partiu do princípio de que a escravidão não teve grande importância na região, já que ali se costumava usar o trabalho indígena em maior escala que o africano. Inclusive, havia certo consenso de que estudar a presença africana no Brasil era relevante apenas nos lugares onde existia grande número de escravos. Basicamente, isso significava falar das regiões Sudeste e Nordeste do País.

Durante anos, esses argumentos foram usados para justificar a falta de aprofundamento da pesquisa sobre a presença negra na Amazônia. O resultado disso repercutiu fundo na produção historiográfica sobre o tema e alcançou os livros didáticos. Afinal, quanto menos se pesquisava sobre o assunto, mais difícil era falar sobre ele.

Desde o fim da década de 1980, esse cenário vem sendo revertido em razão da notável expansão dos estudos sobre a escravidão africana e as experiências de trabalhadores cativos e libertos, ancorados em sólida pesquisa documental, novas temáticas e métodos.

O mergulho nesse universo vem revelando outras histórias sobre a vida dos africanos Brasil afora. Tais resultados ajudam a fortalecer as lutas contemporâneas dos movimentos sociais de negritude porque iluminam trajetórias de indivíduos e comunidades, colaboram nos processos de reconhecimento de terras quilombolas e fundamentam reivindicações de políticas de ação afirmativa e combate ao racismo.

Hoje, as pesquisas revelam um Brasil muito mais diverso do ponto de vista étnico-racial do que se pensava no passado. Os estudos fazem isso trazendo outros personagens para a cena, entre eles, homens e mulheres de origem africana, escravizados ou não, que viveram na Amazônia.

Enegrecendo a floresta

Estudos recentes indicam que a Amazônia foi conectada às redes do tráfico atlântico ainda no fim do século XVII e, até meados de 1750, estima-se a entrada de cerca de mil indivíduos na região, provenientes, em especial, da Costa da Mina, área tradicional de comércio negreiro na África.

O tráfico era feito com forte comprometimento da coroa portuguesa e, considerando que o Grão-Pará e o Maranhão não eram uma de suas rotas mais rentáveis, havia certa irregularidade nos desembarques até a segunda metade do século XVIII, quando foi criada a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão.

A partir daí, coube à nova empresa a tarefa de ampliar a oferta de escravos para os proprietários da região, em especial porque a coroa portuguesa resolveu, no mesmo período, abolir a escravidão dos índios (1755) que eram trazidos dos altos cursos dos rios amazônicos para servir nas propriedades no Pará e no Maranhão. Os índios eram trabalhadores indispensáveis e o fim de sua escravidão, somado à presença dos escravos, não representou uma redução dessa importância. Eles continuaram a ser empregados em diversas formas de trabalho compulsório e, inclusive, compartilharam muitas dessas experiências com os escravos negros.

Enquanto a Companhia esteve em funcionamento (1755-1778), estima-se que tenha comercializado perto de 25 mil escravos na imensa área que hoje conhecemos como Maranhão, Pará, Amazonas e Mato Grosso. Até meados do século XIX, seguindo os novos fluxos do tráfico internacional, as populações desembarcadas na Amazônia serão procedentes, em sua maioria, da África Central Atlântica.

Assim, no século XIX já era bastante evidente a presença da população escrava africana nas vastidões amazônicas, trabalhando com os índios nas lavouras de café, tabaco, cana-de-açúcar, na coleta de produtos da floresta, nas canoas do comércio e também nos diversos núcleos urbanos existentes floresta adentro. Como disse o historiador Flávio dos Santos Gomes, há muito tempo a floresta já estava enegrecida.

Que tipo de atividades realizavam os escravos? Circulando pelas ruas de Belém e Manaus estavam carregadores africanos, vendedoras de açaí, mucamas e criados, forros negociando suas produções de tabaco, artigos de latão e cobre, oferecendo seus serviços de sapateiro, carpinteiro e ourives, divertindo-se nas festas do Espírito Santo, de Nossa Senhora de Nazaré ou, ainda, como membros da Irmandade do Rosário.

Escravos foram empregados na construção de fortalezas, condução de embarcações para Mato Grosso, nas fazendas de cana, arroz, tabaco, mandioca, milho, na criação de gado e de cavalos na Ilha de Marajó. Também eram artesãos, tecelões de chapéus e redes de algodão, apanhadores de açaí, pescadores, trabalhadores do porto, dos arsenais de guerra e da Marinha, das obras públicas, calafates, carpinteiros, pedreiros, ferreiros, vendedores de tabaco, garapa e frutas. Também estavam nas casas senhoriais servindo, ninando, zelando, cozinhando, lavando e costurando. Estavam em todos os lugares dividindo espaços com os trabalhadores índios, o que tornava essas cidades diferentes das outras.

No século XIX, Manaus e Belém surpreendiam os viajantes estrangeiros que por ali passavam. Suas belezas naturais eram atrativos inquestionáveis, mas a diversidade étnico-racial de suas populações era o tema recorrente nos relatos. Os dados mostram que existia, ao lado de uma grande maioria de índios vivendo nas cidades, dos escravos africanos e dos chamados brancos, uma grande variedade de tipos mestiços que tornava a Amazônia um laboratório extraordinário para estudo dos efeitos das “misturas raciais”.

Mas outros laços ligavam as histórias de índios e africanos relacionados com suas experiências de solidariedade construídas a partir do duro cotidiano que muitas vezes compartilharam. As tentativas de constituir novos espaços fora da escravidão levaram à formação de muitos quilombos/mocambos que, eventualmente, reuniram índios e africanos no mesmo espaço. As fugas também foram frequentes e, em vários casos, épicas, porque atravessavam amplos espaços do território amazônico.

Escravos lançaram mão de muitas estratégias para sobreviver em um mundo adverso e se esforçaram para manter, no limite de suas possibilidades, o controle de suas vidas. Buscaram juntar dinheiro para alcançar alforria, formaram comunidades independentes, guardaram segredos no fundo da alma e transmitiram a seus descendentes.

Mas a presença negra não se reduziu à escravidão. Outros homens e mulheres viveram na região sendo professores de música, chefes de polícia, capoeiras, gráficos, lavadeiras, oleiros, carpinteiros – uma lista sem fim. Apesar de o silêncio sobre essas histórias notáveis ainda ser persistente, não há como negar que está sendo revertido pela força inquebrantável de todas essas experiências históricas.

*Professora do Departamento de História da Ufam e pesquisadora do CNPq.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Diosmar Filho.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.