Infância roubada pela Ditadura

Ratos, lixo hospitalar e separação no livro que narra histórias de crianças apreendidas em Alagoas por militares

Jornal Extra de Alagoas

Após dois anos de muita pesquisa, 2014 foi de esclarecimento para muitos brasileiros. A Comissão Nacional da Verdade divulgou no início de dezembro o relatório sobre as violações dos direitos humanos entre 1946 e 1988, abarcando os anos de chumbo da ditadura militar.

Com o objetivo de levantar a verdade histórica, o material serviu como um tipo de justiça, mesmo que tenha passado bem longe dos tribunais brasileiros. Entre depoimentos e desabafos, um material se destacou por focar em pessoas que viviam dentro do ativismo contra a ditadura, mas que ainda não entendiam os fatos políticos do país.

O livro “Infância Roubada – Crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil” narra com detalhes o que acontecia com os filhos daqueles que discordavam do regime político da época. Em Alagoas, três das muitas crianças que foram capturadas contam os abusos da pressão militar. Uma delas é André Almeida Cunha Arantes, filho de ativistas contra a ditadura, que mudou-se com a família de São Paulo para o território alagoano.

JERRY, O RATO

“Tinha 3 anos e lá estávamos em mais uma situação estranha. Durante a noite, uns ‘amigos’ de meus pais vieram nos buscar em nossa pequena casa que ficava no interior de Alagoas, mais precisamente em Pariconha, distrito de Água Branca no alto sertão. Nos levaram de jipe para um castelo (Policlínica da Polícia Militar de Alagoas), em Maceió. Lembro que achei aquilo estranho. Como era noite, o castelo pareceu meio sombrio”.

Quando acordou pela manhã, ele percebeu que seu castelo era um quarto pequeno, cinza e com grades. Da policlínica da PM foram para a Escola de Marinha de Alagoas. Lá, ele tinha regalias e poderia descer até o pátio cheio de lixo e brincar em meio aos Jerrys, nome dado pela sua mãe aos ratos que transitavam pelo local.“Comia no restaurante dos oficiais até o dia em que um oficial pediu que a minha mãe me deixasse com ele e a esposa, já que ela não tinha futuro pra me oferecer. Mais do que depressa, minha mãe me pegou pela mão e saiu dali.

No dia seguinte, já estávamos comendo no restaurante dos soldados e dias mais tarde fomos transferidos para outra prisão”, lembra. André, a mãe e a irmã ficaram quatro meses presos, já o pai, dois meses a mais. No final desse período foram levados a julgamento, em Recife (PE). Em Alagoas, quando não encontravam o marido prendiam a mulher. “Com isso a advogada pediu a libertação de nossa mãe. Acatado o pedido, fomos os três libertados. Meu pai ficou preso mais algum tempo e depois fugiu da prisão durante um jogo de futebol entre os dois principais times de Alagoas”.

JANELA DE PAPEL

Irmã de André, Priscila também tem suas lembranças. “Priscila Almeida Cunha Arantes. Foi este o nome que os meus pais me deram em 1º de maio de 1966 quando nasci, mas não foi este o nome que utilizei até meus 11 anos de idade, quando, então, meu pai foi preso e minha mãe ficou foragida, na época da ditadura militar em nosso país. Até os meus 11 anos, sempre fui Priscila Guimarães Silva, uma criança feliz que vivia como muitas outras de minha idade na periferia de São Paulo com a família”.

A vida seria de qualquer criança se não fosse o mistério das janelas da casa estarem sempre forradas de papel. Sem contar a mania de seu pai em escutar rádio tão baixo dentro do quarto. “Certo dia, fomos tirados às pressas da avenida Itaquera e levados por meu tio Bruno, irmão da minha mãe, de carro, até Belo Horizonte para a casa de minha avó materna. Não entendia ao certo porque estávamos indo para Belo Horizonte e muito menos o que de fato acontecera.

Mas sabia que era algo muito grave, e alguma coisa acontecera ao meu pai. E de fato ocorreu. Meu pai fora capturado em plena estação Paraíso, do Metrô – nome engraçado! – pelos militares, em dezembro de 1976”. O pai de André e Priscila, Aldo Silva Arantes, nasceu a 20 de dezembro de 1938, em Anápolis (GO). Estudante de direito da Pontifícia Universidade Católica, do Rio de Janeiro, foi eleito presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE).

Em dezembro de 1963 casou-se com Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes. Após o golpe militar de 31 de março de 1964, exilou-se em Montevidéu, no Uruguai.

De volta ao Brasil em 1965, passou a viver na clandestinidade. Em 1968, realizava trabalho político junto aos camponeses no sertão de Alagoas. Em 1972, ingressou no Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Exerceu o mandato de deputado federal por quatro vezes e foi constituinte em 1988.

Maria Auxiliadora de Almeida Cunha, nascida a 5 de novembro de 1940, em Belo Horizonte (MG), após sair da prisão seguiu com a militância de combate à ditadura militar. Psicóloga, mestre em Psicologia Clínica e doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, foi coordenadora Geral de Combate à Tortura da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (2009-2010).

Mais uma vez Pariconha

Em 1968, aos 5 anos de idade, Rita de Cássia Resende foi morar com os pais Gilberto e Rosemary em Pariconha, no interior de Alagoas. Ali, eles eram chamados de “Juarez” e “Rosa”. A explicação era que esses nomes seriam sinônimos de segurança.Brincava de fazer carro de boi com cacto e palito de dente, fazia guerra de mamona.

Ganhou um pote de barro para carregar água na cabeça, mas quebrou. Divertia-se com coisas simples da região, pois não tinha brinquedo.“Fui feliz ali até o dia que aconteceu algo que uma criança não pode entender, nem suportar sem sentir pavor e insegurança. Foi uma noite de pesadelo. Acordei com batidas fortes na porta, gritos, depois porta caindo, a casa sendo invadida por soldados fortemente armados. Hoje eu diria que foi um filme de terror”. Enfim, a prisão. Tinha quinze minutos para almoçar em um refeitório que saía para um pequeno pátio.

Corria para lá junto a Priscila, o André e outras crianças presas políticas, querendo brincar. “Havia muita sujeira e hoje sei que era lixo hospitalar jogado a céu aberto no pátio do Hospital do 20º Batalhão da Polícia Militar de Alagoas. Apesar dos esforços de meus pais, depois que saímos dali só consegui me alfabetizar aos nove anos de idade”. A mãe de Priscila, Rosemary Reis Teixeira nasceu em 26 de março de 1944, em Goiânia, Goiás. Em março de 1967, com o acirramento da repressão, Rosemary e Gilberto casam às escondidas e entram para a clandestinidade.

Em abril do mesmo ano, o casal e a filha adotiva Rita vão viver em Pariconha. Lá, Rosemary passa a usar o codinome de Rosa e Gilberto assume o codinome de Juarez Echeverria.

Em Pariconha fazem trabalho de base com os camponeses do sertão alagoano. Rosemary atua na alfabetização de camponeses por meio do método Paulo Freire e na politização das mulheres da região. Hoje, Rosemary é servidora pública estadual aposentada. Gilberto Franco Teixeira nasceu em 18 de junho de 1941, também em Goiânia. Depois do período de trabalho de base junto aos camponeses de Pariconha e da prisão, já de volta a Goiás, Gilberto volta à universidade e termina o curso de direito.

SERVIÇO
A história completa dessas e de outras vítimas estão no livro “Infância Roubada – Crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil”, que está disponível online pelo site www.comissaodaverdade.org.br.

Foto: Andre tinha 4 anos e a irmã, Priscila, 3 quando foram levados junto com os pais para a prisão, em 1969

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

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