Relatório da Comissão da Verdade: “Inaugura-se um novo tempo de discussão e de debate”. Entrevista especial com Jair Krischke

Foto: Pragmatismo Político
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“Foi uma Comissão realizada apenas para atender a um clamor brasileiro, mas as condições para a realização do trabalho não foram dadas, o que é lamentável”, critica o ativista dos direitos humanos

IHU On-Line

“O relatório da Comissão da Verdade ficou devendo alguma coisa à sociedade brasileira, pois não aprofundou alguns temas como deveria ter aprofundado”, comenta Jair Krischke na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone. Na avaliação dele, a operação Condor, por exemplo, “deveria ter sido melhor avaliada. O relatório diz que não há elementos suficientes para provar a participação do Brasil na operação, mas eu posso falar solenemente desse assunto, porque prestei depoimento à Comissão da Verdade sobre isso. Documentei a questão, mostrando que quem criou a operação Condor foi o Brasil, sim”.

Para ele, uma das razões pelas quais a Comissão não conseguiu aprofundar suas investigações deve-se ao fato de pouquíssimas pessoas estarem envolvidas com as investigações. “E esse foi o principal problema. Depois, a própria presidente prorrogou o prazo de atuação da Comissão da Verdade, e só mais tarde se deram conta das dificuldades e trouxeram mais pessoas para trabalhar, porque a investigação da Comissão começou com sete comissários e 14 auxiliares. Na Comissão da Verdade da África do Sul, que é sempre referida, 450 pessoas trabalharam”, pontua.

Krischke criticou também a fala da presidente Dilma ao mencionar que “existem acordos políticos que devem ser cumpridos”. E dispara: “Gostaria de saber que acordos são esses, porque esses acordos são espúrios. A imprensa deveria perguntar à presidente que acordos são esses. Eu, como cidadão, não fiz acordo nenhum. Nem acho que é preciso rever a lei de Anistia, mas lê-la com atenção, porque a lei diz que são anistiados crimes políticos e conexos. Conexos a quê? A crime político, evidentemente. Bem, agentes de Estado civil ou militar não podem cometer crime político, por serem agentes do Estado. E se eles cometerem crime, será crime comum. No artigo 2º da lei de Anistia há um parágrafo que diz que crimes contra pessoas não estão anistiados, e tanto é verdade que, promulgada a lei, muitos brasileiros continuaram na prisão. A lei é de agosto de 1979 e em fevereiro de 1980 havia greve de fome de preso político. Matar, torturar e desaparecer seria contra a pessoa ou não? Então, não se quer ler a lei tal qual está escrita”. 

Apesar das críticas, Krischke assinala que é preciso “aplaudir as recomendações da Comissão da Verdade no relatório, que foram muito importantes, entre elas, a de extinguir as polícias militares como herança da ditadura. Em termos de segurança pública, é uma boa recomendação”.

Jair Krischke é ativista dos direitos humanos no Brasil, Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai. Em 1979, fundou o Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, a principal organização não governamental ligada aos direitos humanos da região sul do Brasil. Também é o fundador do Comitê de Solidariedade com o Povo Chileno. Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor leu o relatório da Comissão da Verdade?

Jair Krischke – Ainda não consegui ler, mas olhei alguns pontos, os quais posso comentar. Do que analisei até agora, penso que o relatório ficou devendo alguma coisa à sociedade brasileira, pois não aprofundou alguns temas como deveria ter aprofundado. Cito especialmente a questão da Operação Condor, que deveria ter sido melhor avaliada. O relatório diz que não há elementos suficientes para provar a participação do Brasil na operação, mas eu posso falar solenemente desse assunto, porque prestei depoimento à Comissão da Verdade sobre isso. Documentei a questão, mostrando que quem criou a Operação Condor foi o Brasil. Documentei o caso do coronel Jefferson Cardim de Alencar Osório, e com isso ficou muito claro, nas documentações que entreguei, que o Brasil inaugurou essa prática, sim. Depois, apresentei o segundo caso de Operação Condor, que é de junho de 1971, e outros documentos mais que mostram a participação brasileira no caso.

Costumam dizer, e eu contrario essa posição, que a operação Condor dá-se em Santiago do Chile em novembro de 1975. Bem, nessa ocasião se deu o nome da operação, mas dois militares brasileiros que participaram da reunião se declararam apenas e tão somente observadores e não assinaram a ata. Então, se vou tomar essa postura como boa, terei de dizer que o Brasil não tem nada a ver com a Operação Condor. Mas dizer que o Brasil não participou da operação Condor é um absurdo, porque participou em várias e várias ocasiões tanto com ações no exterior, especialmente em Buenos Aires, dando recibos ao aparelho repressivo argentino, como no território brasileiro, no Rio Grande do Sul, com o sequestro de argentinos no dia 12 de novembro de 1978, em Porto Alegre.

É verdade que quando enfrentamos essa situação nem sabíamos que o nome da operação era Operação Condor, mas lutamos contra um sequestro que ficou claríssimo, inclusive, com sentença policial, condenando policiais gaúchos que atuaram em conjunto com a repressão uruguaia, toda ela militar. Depois, em 1980, em pleno Aeroporto do Galeão, dois argentinos foram vítimas da Operação Condor. No meu depoimento documentei isso com um documento norte-americano que narra como se deu essa operação. Depois, ainda em 1980 – e quando falo da década de 1980, estou falando de um período pós-Lei de Anistia –, em junho, em Uruguaiana, na fronteira com a Argentina, desaparecem o padre Jorge Oscar Adur, capelão montonero, e Lourenço Ismael Vinhas, jovem estudante de medicina, que vinham em ônibus diferentes. Então, citei os fatos, demonstrei documentos e acho que tudo isso, no relatório, ficou muito pobre.

IHU On-Line – E por que acha que se chegou a essa conclusão em relação à Operação Condor?

Jair Krischke – Estou falando daquilo que sei em função do meu depoimento. Imagino que outras pessoas também prestaram depoimentos e, ao lerem o relatório, vão achar que esses depoimentos deveriam ter sido mais trabalhados.

Uma das questões que apareceu, ainda quando se começou a discutir a criação da Comissão da Verdade e se falava em dois anos para examinar um período de 1946 a 1988, foi o fato de haver pouquíssimas pessoas envolvidas nas investigações. E esse foi o principal problema. Depois, a própria presidente prorrogou o prazo de atuação da Comissão da Verdade e só mais tarde se deram conta das dificuldades e trouxeram mais pessoas para trabalhar, porque a investigação da Comissão começou com sete comissários e 14 auxiliares. Na Comissão da Verdade da África do Sul, que é sempre referida, 450 pessoas trabalharam.

IHU On-Line – Foi intencional ter uma Comissão reduzida no Brasil?

Jair Krischke – Acho que sim; foi uma Comissão realizada apenas para atender a um clamor brasileiro, mas as condições para a realização do trabalho não foram dadas, o que é lamentável.

IHU On-Line – Além da Operação Condor, que outros pontos não foram explorados de modo suficiente pela Comissão?

Jair Krischke – Para responder a essa questão, vou ter de ler o relatório com mais atenção.

IHU On-Line – Quais são os pontos louváveis do relatório?

Jair Krischke – Sobre este aspecto, tenho de aplaudir as recomendações da Comissão da Verdade no relatório, que foram muito importantes, entre elas, a de extinguir as polícias militares como herança da ditadura. Em termos de segurança pública, é uma boa recomendação. Outro aspecto importantíssimo foi o fato de se ter utilizado o critério internacional da linha de comando, onde estão indicados os generais presidentes e os ministros militares, ou seja, toda a cadeia de comando responsabilizada. Isto eu aplaudo porque é isso que tem sido feito no mundo todo.

IHU On-Line – Quais aspectos destaca como sendo novidades ou boas apurações feitas pela Comissão da Verdade e apresentadas no relatório? A questão do genocídio indígena foi uma das grandes surpresas desta investigação?

Jair Krischke – O caso indígena não foi propriamente uma novidade. Esses acontecimentos apenas não eram muito divulgados e tampouco aprofundados. A Comissão abriu um pouco esse caso, mas houve muita dificuldade ao tentar esclarecer esse tema.   

IHU On-Line – Quais as novidades do relatório acerca de locais onde eram praticados atos de tortura?

Jair Krischke – Neste aspecto, foi uma vergonha, porque se deve lembrar que a Comissão oficiou ao Ministro da Defesa, que levou alguns meses para responder em 455 páginas que nunca houve tortura nos quartéis. O parecer dele foi tão vergonhoso que depois tiveram de refazê-lo, porque não houve colaboração militar nesse processo.

IHU On-Line – O relatório deu algum destaque à atuação dos presos políticos?

Jair Krischke – Apenas relatos; não aprofundou os casos.

IHU On-Line – Como o senhor interpreta o fato de a presidente ter se emocionado ao ter recebido o relatório, mas ter dito que “o Palácio do Planalto não fará qualquer gesto para incentivar a revisão da Lei da Anistia”?

Jair Krischke – A presidente disse o que nos esclarece: existem acordos políticos que devem ser cumpridos.

IHU On-Line – Depois da entrega do relatório, o coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Pedro Dallari, disse que Argentina, Chile e Uruguai já julgaram quem praticou crimes de Estado em suas ditaduras, mas o mesmo não ocorreu no Brasil, e nesse sentido, a presidente Dilma disse que “nós reconquistamos a democracia à nossa maneira, por meio de lutas duras, por meio de sacrifícios humanos irreparáveis, mas também por meio de pactos e acordos nacionais, que estão muitos deles traduzidos na Constituição de 1988”. Como o senhor vê essas declarações?

Jair Krischke – Gostaria de saber que acordos são esses, porque esses acordos são espúrios. A imprensa deveria perguntar à presidente que acordos são esses. Eu, como cidadão, não fiz acordo nenhum. Nem acho que é preciso rever a lei de Anistia, mas lê-la com atenção, porque a lei diz que são anistiados crimes políticos e conexos. Conexos a quê? A crime político, evidentemente. Bem, agentes de Estado civil ou militar não podem cometer crime político, por serem agentes do Estado. E se eles cometerem crime, será crime comum. No artigo 2º da lei de Anistia há um parágrafo que diz que crimes contra pessoas não estão anistiados, e tanto é verdade que, promulgada a lei, muitos brasileiros continuaram na prisão. A lei é de agosto de 1979 e em fevereiro de 1980 havia greve de fome de preso político. Matar, torturar e desaparecer seria contra a pessoa ou não? Então, não se quer ler a lei tal qual está escrita.  

IHU On-Line – Em termos políticos, o que se espera depois da entrega do relatório da Comissão da Verdade?

Jair Krischke – Inaugura-se um novo tempo de discussão e de debate a partir do que aparece no relatório. Nesse sentido, há bastantes elementos para discutirmos daqui para frente.

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