A metade do tamanho que se tem, por Nina Alencar Zur

Nina Alencar Zur é estudante de direito na UERJ e, em estágio na Defensoria Pública do Rio de Janeiro, tomou contato com os sentenciados recolhidos no Presídio Muniz Sodré. Desta experiência, banhada de humanidade, vem o texto abaixo (publicado originalmente no Diários de Mochila), contundente e ao mesmo tempo poético. “A maioria ainda está lá diminuindo de tamanho e fugindo do tempo”, escreve. Se a literatura é uma forma de condensar a vida, o texto de Nina nos mostra o que é possível ver, quando tratamos o direito de uma forma menos formal e burocrática. (Marcelo Semer)

prisão - mãos grade

Nina Alencar Zur, em Diários de Mochila

É só ao meio dia que David volta das distâncias e enxerga em seu corpo alguma coisa além de um pedaço de carne podre. Uma pequena porção de liberdade entra pelos seus poros, alagando-o em uma espécie primitiva de vida. Vida sem alegria, apenas a noção de que se está. O sol cobre o pátio sempre cinza do presídio e aquece até o buraco mais fundo da sua alma. Ela já mofa, é úmida. A cela fica um inferno em dias quentes. Cadeia é brincadeira desgraçada, jogo em que só se perde. Caminha até encontrar um canto vazio, sem ninguém pra perturbar com assunto de anteontem. Lá as conversas são sempre atrasadas, inúteis, como se vivessem todos no tempo dos bichos. Só se pasta e caga. Para ao lado de três latas de lixo enormes. Respira fundo aquele cheiro de merda e se recolhe para dentro do próprio corpo. Fica na mesma posição por alguns minutos, sentindo o bater do peito. O único movimento que percebe fora é o zumbido constante das moscas que, como ele, levam a vida mergulhadas na sujeira.

Escapa da agonia como pode, mas ela está sempre rondando a sua mente, tentando dele se apropriar. David está encurralado pelo sofrimento, retorcido pelas cordas do desespero, que permitem pouquíssimos movimentos. Divide a cela com mais dezoito homens, cada um com seus vinte e poucos anos nas costas. Todos ali pela força do tráfico, que só derruba quem nasce com a doença da pobreza. Quando chegou, aprendeu que a pobreza é uma doença. Ela consome um pouco todo dia, até que deixa imprestável. Castra os desejos, impõe barreiras e, por fim, trancafia. É a única explicação para eles serem esquecidos naquele depósito. Pobreza contagia e tem que ser isolada, sem piedade. Tomou ódio crescido dos seus cúmplices naquela penitência, sem chances de melhorar, cada dia mais fraco, sugado. Também aprendeu que onde tudo é ausência, tudo se negocia. Até mesmo o espaço para ganhar alguma hora de sono mal dormida, pisoteado pelos que ficam de pé, suando, esperando a sua vez de deitar. Cada passo e respiração, cada punheta e mijo são compartilhados. Na cadeia, a solidão é mais profunda. Ela dá no espírito.

Ao se levantar, fica de frente para as lixeiras. O alimento apodrecendo ali, à luz do dia, se parece com os seus sonhos, todos azedos. Enxerga, entre o arroz e o feijão, a sua família, o morro, o samba. Foi aquele projeto de esgoto o que comeu no almoço. Dá risada da sua resistência. Desde pequeno aprendeu a se virar com o que tinha e nunca sofreu de mal de gente fresca. Ganhou costume de viver de sobras. Na prisão, não faz mais do que aprimorar a sua habilidade em seguir de qualquer jeito. Pouco tempo se passou desde que chegou ali, mas viu passar eternidades. A ideia do tempo muda e é preciso muito cuidado para não ser engolido por ele. Por mais que se invente o que fazer, uma hora o tempo te alcança. Ele para de passar. Já não há mais novidade, tudo é eterna repetição. Nada se espera além dos gritos dos agentes penitenciários. Já viu muito marmanjo se entregar à loucura. É natural, como uma gripe forte que dá na gente. Esses são levados para o sanatório penal, desistidos, mergulhados na própria angústia, onde os ponteiros do relógio andam para trás.

Quando aquela rotina ainda era uma novidade, David estava assustado, sem saber o que esperar dos anos que viriam. Seus planos foram arrancados subitamente por uma sentença. Soube, depois, em algum dos raros encontros com o único defensor público que assistia os setecentos desgraçados daquela miséria toda, que era um preso provisório. Não entendia o que aquilo queria dizer, pois os meses passavam e ele continuava sendo provisório. Depois, entendeu. Com quase todos eles é assim. São culpados desde o dia em que nasceram, perigosos para os olhos puros dos homens, cheios de medo. Com o tempo, se acostumou com o descaso da justiça. Ela não tem olhos pra gente feia. Ficou indiferente aos anseios e estímulos de seu coração, que agora só bate ao meio dia. Até Jaqueline sumiu. Ela nunca o visitou. É melhor mesmo que fique bem longe da coisa desfeita de jeitos em que ele se transformou. Também não quer mulher sua humilhada, abrindo o cu praqueles filhos da puta, como se fosse uma gaveta bagunçada que se vasculha.

O sol no rosto já começa a irritar a sua vista, acostumada com os muitos escuros daquele lugar. A reclusão já arrancou tudo de tolerável que tinha por dentro e agora tira a sua cor, a única coisa que resta do que era. Pálido, ele será um retrato insuportável de si mesmo. Caminha até a sombra, doendo todo, como um cachorro sarnento, inadequado. Um animal largado que não se aproxima de ninguém porque sabe que não será recebido. Ninguém entende os mancos. Já tem metade do tamanho que tinha antes de ser preso, em altura, peso e sonhos. Largou mão do trato possível. Só se esforça em parecer saudável quando sabe que receberá visita da mãe. Barganha um sabonete para poder abraça-la sem cheiro de lodo. Ela surge cada vez mais envelhecida. Parece uma árvore de duzentos anos que continua firme a ver passarem as estações. Quantas rugas em seu rosto cansado são prolongamentos da maternidade. Pobre sina a da mãe de um cadastro.

Senta-se novamente e observa uma partida desastrada de futebol. Um bando de jumentos correndo atrás da bola, sem rumo. Mais parecem perdidos que em partida. Perder-se em um espaço sempre o mesmo, taí um segredo que a gente só descobre no cárcere. David ainda tem confiança nos dribles, mas resolve ficar quieto porque acordou com a coluna fodida. Ao ser chamado em campo, lança o dedo do meio. Está intratável, perfeito para a solidão. Teve que aprender a driblá-la desde muito cedo, mas agora ela é sua dupla na zaga, a defender o último fio de bom senso em sua cabeça. Recosta-se e geme de dor. Volta e meia adoece e o único remédio é esperar a virada dos dias, pois a enfermaria é um depósito de produtos fora da validade. Assim como eles, ali no sol, todos fora da validade.

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