O Juiz e a farinha do Uarini, por José Ribamar Bessa Freire

Beco, Dile 2(1)

Em Taqui Pra Ti

“Por favor, pare agora, senhor Juiz, pare agora”
Wanderlea

Quando tomei conhecimento da lambança do juiz que foi flagrado numa blitz no Rio dirigindo sem habilitação um carro sem placa e sem registro de licenciamento, telefonei para minhas irmãs em Manaus. São elas as narradoras oniscientes que me abastecem com as histórias do Bairro de Aparecida, em cujos becos cabe todo o universo. Tudo o que acontece e ainda vai acontecer no planeta, já ocorreu no Beco da Bosta, onde se vive um tempo mítico. O Beco contém o mundo e o infinito. Essa é que é a verdade.

– Maninha, como é o nome do teu ex-vizinho, marido da dona Albertina, que mandou prender a Leonor por causa da farinha do Uarini?

– “Cachorrão” era o apelido. Já morreu faz tempo. Esqueci o nome dele, mas da história eu lembro – me disse a Dile.

Consultei as outras irmãs. Nada. Nenhuma delas – são 9 – sabia o nome do “Cachorrão”. Nem a Helena que tem memória de elefante. O cara era tão bostífero, mas tão bostífero que elas apagaram seu nome da memória. Nos anos 1950, ele serviu o Exército aquartelado no 27° Batalhão de Caçadores, hoje prédio do Colégio Militar. Lá dentro era um reles soldado e se borrava todo diante do grito do sargento, mas lá fora se sentia “o general”, berrava e mugia, humilhava e agredia mulher, filhos e vizinhos civis.

Quando deu baixa, “Cachorrão” manteve o poder, porque trocou a farda verde-oliva pelo uniforme cáqui da Guarda Municipal de Parques e Jardins Com ela, vestido e investido de autoridade, continuou semeando terror nas ruas, vielas e becos do bairro, amparado em postura municipal que conferia atribuições aos guardinhas para “manter a ordem pública, impedir a prática de delitos e defender o patrimônio municipal”.

Teste da farinha

Uma dessas posturas proibiu “o teste da farinha” que a gente aprende desde criancinha quando ainda está engatinhando. Consiste em saborear a farinha, antes da compra, para ver se está bem torrada e crocante. É assim: a gente mete a mão no paneiro, enche-a de farinha e, de longe, lança tudo na boca com tal destreza que os grãos voam pelos ares, mas nenhum se perde. São todos abocanhados. Se nas Olimpíadas houvesse a modalidade de lançamento de farinha à distância, os amazonenses ganhariam todas, como os quenianos na Corrida Internacional de São Silvestre.

Por que proibir costume tão enraizado em nossa cultura que deixa embasbacado os que vêm de fora? Por puro preconceito. Acontece que na época Manaus detinha o maior índice de tuberculose no país, registrando 98,6 casos por 100 mil habitantes. Além disso, os leprosários do Aleixo e de Paricatuba acolhiam número crescente de portadores de hanseníase. Aí, um médico vindo de São Paulo se invocou que a farinha era crocante porque leprosos deixavam casquinhas dentro do paneiro. Fez campanha para proibir a prática.

Esse médico incompetente, traumatologista e ortopedista, não entendia chongas de epidemiologia e de saúde pública, nem muito menos de mandioca, achava que os bacilos de Hansen e de Koch eram transmitidos através da farinha manuseada, especialmente aquela fabricada no município de Uarini, feita de mandioca puba amarela, com caroços duros, granulados e uniformes. Saborosos. Convenceu os vereadores.

O truculento prefeito Stênio Neves assinou portaria em 1955, estabelecendo multas para vendedores cujos fregueses usassem a mão para provar farinha. O parágrafo “d” da portaria obrigava o uso de caneco nos mercados, feiras e bancas avulsas para evitar qualquer contato do produto com a pele do comprador. Para isso se baseou na Lei n° 132 de 15 de Junho de 1949 que criou a Guarda Municipal. Mas ninguém queria usar caneco.

Sobrou para a Leonor que tinha banca em frente à taberna do Armindo, na época modesta birosca de um só pavimento, mas hoje um arranha-céu de dois andares, quase uma multinacional da alimentação com o nome de Boteko da Fundação. É o nosso “Empire Shit Building”, uma porta dando pra pracinha e duas para o beco que dominaria toda a 5ª Avenida, se Aparecida fosse Manhattan.

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Mão no paneiro

Foi aí que o Cachorrão decidiu comer farofa de jabá. Já tinha em casa cebola, alho, salsinha, tomate e pimenta murupi, só faltava a farinha do Uarini. Vestido com a farda de guardinha, ele – que devia zelar pelo cumprimento da lei – transgrediu. Meteu a mão no paneiro, Leonor protestou:

– Assim me prejudica. Use o caneco, por favor!

Cachorrão invocou sua condição de agente da lei, Leonor obtemperou que ele não era Deus. Depois de intenso bate-boca, ela recebeu voz de prisão por desacato à autoridade. O Petel saiu em defesa da cunhada, por quem nutria amor platônico. Saíram na porrada. Foram levados para a Chefatura de Polícia, no antigo casarão da Marechal Deodoro. O Delegado confirmou a prisão e estipulou fiança de três salários mínimos, na época 2.400 cruzeiros, num total de 7.200. A Teca e a Céu, apaixonada pelo Petel, fizeram uma “vaquinha” e libertaram os dois das garras do arbítrio.

Mais de meio século depois, o juiz João Carlos de Souza Correa foi parado em blitz da Lei Seca, em 2011, na Zona Sul do Rio, completamente irregular. A agente de trânsito Luciana Tamburini, como manda a lei, determinou que o Land Rover sem placa fosse rebocado. O juiz deu voz de prisão a ela, que recorreu à Justiça. Na última quarta-feira, finalmente, a 14ª Câmara do Tribunal, composta por coleguinhas do juiz, por unanimidade e corporativamente, manteve a condenação que obriga a agente de trânsito a pagar R$ 5 mil ao magistrado sem carteira.

Os internautas fizeram uma “vaquinha”, mas Luciana vai recorrer ao Superior Tribunal de Justiça e “até ao tribunal de Deus”. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) pediu o afastamento imediato do juiz ao Conselho Nacional de Justiça. Trata-se de um caso emblemático. Se as outras instâncias mantiverem a decisão, o Judiciário vai ficar isolado e vai ter que meter o Brasil inteiro na cadeia, porque estamos todos indignados.

Depois, os black-blocks que saem às ruas são considerados desordeiros, quando a ordem já foi subvertida justamente por aqueles que deviam por ela zelar. Temos orgulho de Luciana e vergonha do juiz. Se não tivermos coragem de gritar isso, é porque merecemos o poder judiciário que temos.
Eu não disse que qualquer evento em qualquer parte do mundo já aconteceu no Bairro de Aparecida? Meu sobrinho Sérgio, que não me deixa mentir, fotografou o cenário e o local do crime. Esse juiz e o Cachorrão são mesmo farinha do mesmo saco.

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