“A continuidade da violência de Estado por meio da manutenção de estruturas repressivas herdadas da ditadura civil-militar impõe a criação de uma comissão especial sobre mortos e desaparecidos vítimas da violência de Estado do período democrático. Com isso, espera-se dar um passo fundamental no sentido da transição democrática brasileira, garantindo às vítimas da violência do Estado democrático os mesmos direitos, as mesmas reparações que cabem às vítimas da ditadura civil-militar.”
Essa proposta faz parte de um documento que deve ser entregue pela presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Eugênia Gonzaga, ao coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Pedro de Abreu Dallari, nesta quinta (6). Criada em 1995, a CEMDP tem como objetivos principais reconhecer vítimas da ditadura, buscar e identificar desaparecidos políticos e atuar por justiça e reparação.
O documento, ao qual este blog teve acesso, quer dar subsídios para o capítulo do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, a ser apresentado no próximo mês, que fará recomendações a serem cumpridas pelo Estado brasileiro.
De acordo com o documento, “o conceito de ‘desaparecido político’ vem sendo interpretado muito estreitamente”. Não compreenderia, por exemplo, desaparecidos que não possuíam envolvimento direto com movimentos ou organizações de resistência à ditadura, como indígenas, camponeses, minorias étnicas e sexuais, entre outras.
Ao mesmo tempo, o conceito estaria sendo utilizado apenas para designar desaparecimentos ocorridos até a promulgação da Constituição de 1988. Para a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, esse recorte pressupõe que houve uma ruptura radical entre a ditadura e a democracia e que a transição “lenta, gradual e segura” ocorreu com êxito.
“Contra essa percepção, é preciso insistir que a arquitetura da segurança pública existente atualmente é legado da ditadura civil-militar brasileira. Referimo-nos, aqui, à estrutura de organização das forças de segurança; à formação dos policiais nas escolas e quartéis; ao uso sistemático da tortura como meio de se obter informação; aos índices assustadores de execuções sumárias cometidas pelas polícias brasileiras e encobertas por laudos necroscópicos falsos e pela máscara jurídica do ‘auto de resistência seguido de morte’; à permanência do ‘poder desaparecedor’, responsável pelo aumento do número de desconhecidos sepultados em valas comuns – ou em valas clandestinas”, afirma o documento.
Segundo a Comissão Especial, hoje, as principais vítimas da violência de Estado não são militantes de organizações políticas, mas jovens negros e moradores das periferias. E além do abandono social a que estão condenados esses grupos, há o desamparo institucional de suas famílias (que não conseguem conhecer a verdade sobre o que aconteceu a seus parentes) e a impunidade dos algozes.
Entre as outras sugestões encaminhadas à Comissão Nacional da Verdade, destaca-se:
– Atualizar os dados sobre vítimas fatais da ditadura, incorporando setores até agora negligenciados ou pouco contemplados, como pessoas em situação de rua, presidiários, camponeses, operários, indígenas e outras minorias étnicas, religiosas e de gênero;
– Criar a Secretaria Nacional de Justiça de Transição, com orçamento, estrutura e recursos humanos próprios, para desenvolver, implementar e monitorar políticas a fim de enfrentar o legado de violência da ditadura e contribuir com a consolidação da democracia no Brasil;
– Ampliar a competência da própria Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos para que o encerramento do período legal das atividades da CNV não represente o término da apuração das violações de direitos humanos durante a ditadura. Isso incluiria a garantia de poder para requisitar informações e documentos, ainda que sigilosos, de órgãos públicos, convocar entrevistas, determinar a realização de perícias e diligências para coleta de dados, promover audiências públicas. Para tanto, sugerem a garantia de melhores condições materiais e mais recursos humanos para a CEMDP.
Criada em 2011 e instituída em maio de 2012, a Comissão Nacional da Verdade tem prazo até 16 de dezembro deste ano para o encerramento dos trabalhos, incluindo a apresentação de relatório contendo as atividades realizadas, os fatos examinados, as conclusões e recomendações sobre as graves violações de direitos humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988.