Por Rosa Freire d’Aguiar*
Da Carta Maior
Claudelei estava na aula de fotografia, em Cascavel, interior do Paraná. O professor começou a mostrar trabalhos de grandes fotógrafos mundiais. De repente, aparece o retrato de uma garotinha de olhos claros, cabelo desgrenhado, bochechas sujas. Claudelei comenta: “Conheço essa menina, é a Joceli, minha vizinha.” Humm… Claudelei, filho de camponeses, nascido no Paraguai, conhece a menina clicada por Sebastião Salgado e que virou capa de seu livro “Terra”?
Verdade — esclarece uma colega da turma depois de consultar a internet: era Joceli. Claudelei Lima, 35 anos, é um ex-sem-terra, hoje morador do Assentamento Celso Furtado, em Quedas do Iguaçu. Conta essa história com indisfarçável gostinho de vitória. Seu sonho era ser jornalista, apesar da escolaridade prejudicada pelos anos passados em acampamentos. Está chegando lá: cursa o segundo ano de jornalismo em uma “faculdade burguesa”. Gasta nove horas por dia para assistir aula: quatro na faculdade, mais cinco de ida e volta, no ônibus. É o único assentado da turma. Quer fazer rádio. Já está fazendo. É o locutor-programador da Rádio Liberdade FM 91,3, emissora comunitária — e pirata — do assentamento.
Acabo de chegar do Assentamento Celso Furtado. Foi Claudelei que organizou meu encontro com os alunos dos três colégios que funcionam no ACF: o Chico Mendes, o Olga Benário e o Construindo Novos Caminhos. De manhã, o auditório em Quedas do Iguaçu está lotado. Claudelei me anuncia gesticulando um sonoro bom-dia, resmunga se a garotada não responde com idêntico entusiasmo. Um comunicador nato, esse futuro jornalista e desde sempre militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST. Depois das duas horas em que transmiti um pouco da vida e obra do economista que deu nome ao Assentamento, Claudelei pega o microfone e lembra àqueles jovens que eles são “fruto da reforma agrária”. É isso: os cerca de 9 mil (dados do Incra) assentamentos dos antigos sem-terra são o melhor semblante da reforma agrária no Brasil, tantas vezes protelada por governos, boicotada pelo agronegócio e parte da sociedade que insiste em demonizar seu maior protagonista, o MST.
Depois de Claudelei, fala Elemar do Nascimento Cezimbra. Esse gaúcho ex-seminarista , formado em filosofia, professor nos cursos de economia e agronomia da Universidade Federal da Fronteira Sul, liderou dezenas de ocupações, batalhou em assentamentos de todo o país e conhece como poucos a dinâmica da luta que se travou — que se trava — entre os latifúndios da monocultura e a agricultura familiar. De um desses embates nasceu o Assentamento Celso Furtado. Nas duas horas da estrada que percorremos de carro, ele conta essa história.
Toda a área era parte do maior latifúndio em terras contínuas do sul do Brasil: 87 mil ha, da madeireira gaúcha Giacomet-Marodin, hoje Araupel S. A. Desde os anos 1930 ali viviam colonos poloneses, trazidos para o Brasil pelo governo Vargas. A Segunda Guerra Mundial arrefeceu esse fluxo. Em 1972 o grupo gaúcho tomou conta da área, derrubou e exportou madeira da floresta nativa e madeiras plantadas. Em abril de 1996 viu duas de suas fazendas (Pinhal Ralo, 4 mil ha; Rio das Cobras, 22 mil ha) serem ocupadas por 3 mil aguerridas famílias de camponeses. A ocupação é o cerne do MST, arma para pressionar o cumprimento da lei. Para os sem-terra é a rotina dolorosa que pontua nossa reforma agrária, “em laboriosa e acidentada gestação”, disse um dia José Saramago: intimidações, humilhações, emboscadas, violências, que no caso do ACF, porém, ganharam repercussão mundial quando Sebastião Salgado imortalizou os acampados, entre eles Joceli, a vizinha de Claudelei.
“Camponês tem raiva de pistoleiro e de latifúndio” — assim Elemar resume a dialética entre pressão e repressão que marcou os sete anos seguintes. “Foi uma luta sofrida, debaixo de barracas de lona preta, crianças morrendo de desnutrição, muitos boias-frias. Mas houve grande pressão de massa, e seria muito perigoso atacar e dispersar os acampados”, diz. O latifúndio entrou na justiça, o Incra descobriu que as fazendas pertenciam à União, portanto nem precisou desapropriá-las ou indenizar seus “donos”. Pagou 75 milhões de reais pelas benfeitorias. Em 6 de dezembro de 2004 foi criado o Assentamento. Quinze dias antes Celso Furtado morria no Rio de Janeiro. A sugestão do nome veio do Incra, mas foi debatida e ratificada pelos moradores.
O Assentamento Celso Furtado é um retrato de corpo inteiro do que poderia ser o campo brasileiro quando (e se) for cumprido o preceito constitucional de desapropriação de latifúndios improdutivos; quando (e se) for praticada uma política de valorização da agricultura familiar frente ao gigantismo do agronegócio. Em seus 28 mil ha vivem 1098 famílias, em lotes de 15 ha, um pouco mais ou menos, dependendo das condições previstas no Plano de Desenvolvimento dos Assentamentos, o PDA. As famílias estão organizadas em quinze comunidades, sendo três as principais, nas quais se tenta instalar uma estrutura maior.
Os lotes costumam respeitar a organização rural, com pomar, quintal, canteiros, galpão, chiqueiro. No ACF, a maior produção é leite: 80%, 3 milhões de litros por mês. Não existe cooperativa, mas diversas associações de agricultores compartilham máquinas agrícolas e outros bens. “Houve uma cooperativa, mas foi à falência e reforçou a desconfiança dos camponeses, que preferem comercializar o leite diretamente com a meia dúzia de empresas. De vez em quando uma oferece mais 2 centavos pelo litro, e o assentado passa para quem dá mais”, conta Claudemir Torrente enquanto percorremos estradinhas de terra. Estas são a maior dificuldade do ACF, pois a prefeitura garante uma precária manutenção, inviabilizando a produção de muitos agricultores. “Outra carência das famílias”, diz Claudemir, “são as estruturas comunitárias, como escolas, centros, quadra esportiva. Praticamente, tudo isso inexiste”. E ainda restam mais de cem famílias excedentes que não couberam no ACF e cujo assentamento se arrasta na burocracia do Incra. Na saúde, porém, avançaram, pois já têm duas Unidades Básicas de Saúde e recursos garantidos para mais uma. E um médico do Programa Mais Médicos atende as famílias.
Claudemir mora com a mulher Patrícia e o filho Victor, de 6 anos, no Assentamento Celso Furtado. Formou-se em advocacia, exerce em Quedas do Iguaçu, é vereador pelo PT. Conta que, além do leite, o ACF produz milho, soja, feijão, hortaliças. A renda média familiar é de 2000 reais, “mas há quem tire quatro vezes mais”, diz. Durante o almoço na varanda de sua casa, explica que as famílias receberam uma ajuda de 2500 reais para construir a residência, o que é bem pouco depois de tantos anos de acampamento, quando dívidas se acumulam apesar da solidariedade e da ajuda mútua. Recebem a posse da terra, mas ainda está para se resolver o estatuto definitivo dos lotes. Em princípio, cada família poderá ter a propriedade definitiva, ou a concessão perpétua com direito de uso e de herança.
Esta é a preferência das lideranças do Movimento, diz Claudemir. Há risco de os assentados optarem pela propriedade definitiva e venderem os lotes para estranhos ou vizinhos, germe eventual de um impensável “latifúndio” no assentamento? Há, Claudemir admite, mas será atalhado mediante a soma vultosa a pagar pelo título de propriedade.
Por ora, ele ressalta o impacto do ACF no município que lhe deu a vereança. “Um assentamento produz não só alimentos para autoconsumo e mercado local, mas muitos empregos.” Dos pouco mais de 30 mil habitantes de Quedas do Iguaçu, 15% são assentados que revigoram a economia com demanda de serviços de todo tipo. “O Assentamento Celso Furtado injeta mais de R$ 50 milhões na economia local”, ele avalia. É só caminhar pela cidade para topar com assentados fazendo uma comprinha, indo ao oculista. Saio de lá na véspera da eleição presidencial.
Lamentando que os candidatos tenham eludido por completo a questão da reforma agrária, tão premente e em pauta entre os professores e lideranças que encontrei. E, também, certa de que o país seria mais igual, justo e solidário se os que nos governam, ao menos eles, fossem um dia a um assentamento, ouvissem o que essa brava gente tem a contar.
* Companheira de Celso Furtado, Rosa Freire d’Aguiar foi correspondente em Paris das revistas Manchete e IstoÉ. Atualmente, é editora e tradutora da Companhia das Letras, desde 1990.