Um ano depois, favoritos ao Planalto ignoram bandeiras dos protestos e voltam ao cenário pré-junho, por Matheus Pichonelli

De duas uma. Ou a capacidade transformadora das manifestações de junho foi superestimada pelos analistas e se extraviou ou a fatura, sem tempo de ser assimilada em apenas um ano, ainda está a caminho. Neste caso, quando vier, o mundo que ontem gritava já terá explodido

Matheus Pichonelli – CartaCapital

A não ser que o Congresso registre, a partir de domingo, uma renovação inédita em seus quadros, é possível dizer que, ao menos nas eleições majoritárias, a fatura das manifestações de junho de 2013 não chegou a ser debitada na campanha de 2014.

Naquele mês, milhões de pessoas foram às ruas inspiradas pelos protestos em São Paulo contra o aumento da passagem de ônibus. Não era pelos vinte centavos, gritavam os manifestantes. Era pelo diapasão de uma sociedade imersa na chamada modernidade líquida que via no Estado uma trava arcaica e pesada para seus anseios – entre os quais o direito a circular pela cidade sem ser tratado como jumento amarrado.

A repressão policial aos primeiros atos mudou a dimensão dos protestos. De repente as pessoas não estavam nas ruas para exigir apenas melhorias no sistema público de locomoção. Estavam nas ruas para exigir o direito de protestar por melhorias no sistema público de locomoção sem serem estraçalhadas pelas forças de segurança.

Ao longo daquele mês, a tensão entre governos e população levou ao derretimento da popularidade de algumas lideranças, a começar pela presidenta Dilma Rousseff. Muitos analistas não tardaram em ver na tensão a demonstração de uma crise de representatividade.

Pela natureza dos protestos, ninguém esperava que das ruas emergisse uma liderança habilitada em entrar no jogo político e balançar o castelo de cartas que começava a ser montado para 2014. Isso porque, na base dos movimentos, estavam grupos autonomistas, como o Movimento Passe Livre, adeptos da ideia de que as transformações políticas e sociais acontecem pela pressão de fora para dentro do sistema. Não havia, portanto, a disposição em se inserir nesta estrutura para lançar alternativas, de dentro, a um sistema político travado.

Devido ao peso de sua estrutura burocrática, o sistema político ensaiou apenas concessões a conta-gotas e em velocidade de transatlântico para atender às demandas de uma população conectada, ágil e desapegada de modelos tradicionais – e que transita pelo mundo em velocidade de cruzeiro. Ainda assim, alguns abalos eram esperados na atual eleição. O primeiro seria o desgaste mais significativo dos governantes que desfrutavam de certa popularidade antes de junho.

Outra mudança esperada era a inclusão, de uma forma ou de outra, das demandas mais claras do movimento, como a tarifa zero para transporte público e a desmilitarização da polícia, além das pautas organizadas e pulverizadas antes e depois dos protestos, como o fim da guerra às drogas, o direito das mulheres e da comunidade LGBT.

Um ano após o ápice dos protestos, no entanto, só se fala de outra coisa nas campanhas dos principais candidatos à Presidência e aos governos estaduais. Enquanto os nanicos assumem o papel de franco atiradores, e tentam trazer algumas dessas bandeiras para o centro do debate, os favoritos digladiam sobre temas como quem fez mais, quem fez menos, geralmente ancorados em números de macroeconomia. Aécio Neves (PSDB), por exemplo, anunciou quem será o seu futuro ministro da Fazenda em caso de vitória, mas não fez a mesma questão sobre quem será seu interlocutor, por exemplo, com os movimentos sociais.

Dilma fugiu como o diabo da cruz de temas incômodos, geralmente lançados por Luciana Genro (PSOL). Evitou comentar as mortes recentes de mulheres que interromperam a gravidez em clínicas clandestinas de aborto. Pela reeleição, Dilma fugiu até mesmo de bandeiras históricas da esquerda, caso da taxação de grandes fortunas, a regulação das propriedades de veículos de comunicação e até mesmo a reforma agrária.

A essa altura do ano passado, imaginava-se que a omissão sobre essas demandas surgidas nas ruas fosse um atestado de óbito para quem buscava apoio popular para se eleger. Um ano depois, as bandeiras foram ignoradas, e o cenário da sucessão voltou ao estágio pré-junho. Dilma caminha a passos largos para a reeleição sem qualquer aceno aos movimentos populares que ontem a contestavam. No Rio e em São Paulo, os governadores que mandaram prender e bater nos militantes que acampavam em seus palácios preparam vitórias acachapantes nas urnas com propostas que apenas prometem reforçar a dose de um remédio que parecia cuspido pela boca das ruas: mais presídio, mais armamento, mais vigilância, mais repressão, mais jovens encarcerados, mais carros nas ruas.

De duas uma. Ou a capacidade transformadora das manifestações de junho foi superestimada pelos analistas e se extraviou ou a fatura, sem tempo de ser assimilada em apenas um ano, ainda está a caminho. Neste caso, quando vier, o mundo que ontem gritava já terá explodido.

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