Após 22 anos do Massacre do Carandiru contexto para novo extermínio continua, sem que cause indignação

“A prisão como forma do aparato repressivo por excelência tem sua longevidade em decorrência de sua aceitação na sociedade. É preciso tomar consciência de que são os miseráveis que estão sendo encarcerados para que os livres se preservem da responsabilidade de fazer frente às disparidades sociais. São necessárias políticas sociais de extirpação das desigualdades e não políticas criminais que acentuem a maximização da pobreza”, escrevem Maíra Cardoso Zapater e Maria Rosa Franca Roque, ambas da coordenação do Núcleo de Pesquisas do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, em artigo publicado por Ponte. Eis o artigo

Há 22 anos, no dia 2 de outubro, na Casa de Detenção de São Paulo, ocorria a maior violação de direitos humanos de cidadãos sob custódia do Estado do mundo. Não há situação semelhante em todo o planeta. Mas nos presídios do Brasil, contextos idênticos e agravados, fazem com que abusos de direitos aconteçam com frequência.

São episódios que não chamam a atenção para a responsabilização do Estado. Para as autoridades, parece ser mais fácil e vendável atuar no sentido da militarização, prometendo reforços de atitudes repressivas, do que na correção das deficiências crônicas de ordens sociais e institucionais.

O perfil dos presos do Carandiru que foram mortos no Massacre – ao contrário do que se supõe – mostra a maioria com idade inferior a 30 anos, baixa escolaridade, detida por crimes de natureza patrimonial. Cerca de 80% não tinha sido condenada, eram, portanto, presos provisórios, que ocupavam o superlotado Pavilhão 9.

Foram mortes sem pena. A maioria sequer havia sido condenada.

Naquele sábado, tentou-se esconder o que era impossível de ficar invisível: os corpos foram empilhados pelos presos sobreviventes em locais isolados do complexo penitenciário. Quiseram ocultar os executados para que nada influenciasse o resultado das eleições municipais de outubro, que ocorreriam no dia seguinte. A sociedade civil, naquele momento, teve impressão de que a ação policial tinha sido proporcional à demandada para reprimenda da desordem instalada. O verdadeiro número de mortos fora noticiado apenas 15 minutos antes do fechamento das urnas, no dia 03 de outubro, mais de 24 horas depois das execuções.

Mas, para além do já tão repisado debate acerca da adequação e proporcionalidade da ação da Polícia Militar naquela data, queremos chamar atenção para o fato de que o Massacre do Carandiru não foi – aliás, não é – um evento isolado, algo como uma situação excepcional que escapou ao controle dos envolvidos, e sim uma fotografia instantânea de uma prática habitual na história nacional, que desde os primórdios combina exclusão com violência.

Prática tem origem etimológica no termo “práxis”, e pode ser semanticamente definido como o agir humano pautado pela aplicação de regras e princípios. Partindo dessa problematização do conceito, afirmamos que a prática de massacrar determinados segmentos sociais no Brasil apoia-se no princípio que estabelece a divisão da sociedade em duas categorias distintas de cidadão: o nós, “cidadãos de bem”, e os outros, “criminosos”, historicamente submetidos a um processo de desumanização que permite excluir e exterminar. Como é prática significa que é também habitual, o que revela mais do que uma reiteração temporal e remete a um estilo de vida, que se alicerça em costumes e valores coletivamente compartilhados, de forma consciente ou não.

O perfil dos 111 mortos no Massacre do Carandiru se assemelha ao perfil da atual população carcerária: conforme dados recentes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o total de pessoas presas é superior a 700.000 (somando encarcerados com pessoas que cumprem pena em regime domiciliar), sendo a 3ª maior população prisional do mundo. É mais que o dobro do que comporta o sistema penitenciário[2]. De acordo com informações do InfoPen (MJ), pouco mais de 1% dos presos possuem nível de instrução acima do Ensino Médio; o trabalho é garantido a aproximadamente 21% dos presos; somente 9% estudam; 9 crimes são responsáveis por 94% dos aprisionamentos; crimes contra o patrimônio e tráfico de entorpecentes são responsáveis por encarcerar 75% dos presos; 40% da população encarcerada é composta por pessoas sem condenação definitiva.[3]

É um seguimento que historicamente sofre processo de exclusão, de desumanização e, dessa maneira é percebido como sendo o outro, diferente do que eu me vejo. Por isso se suporta assistir sendo massacrados. Qual cidadão livre identifica-se com o perfil dos que estão presos? Observa-se que “cometer crime” não é o único requisito para ser selecionado pelo sistema penal. O critério legal para se considerar um ato como crime não corresponde ao critério social de reprovação de condutas diuturnamente praticadas, sem que seus autores sofram a intervenção penal, apesar da previsão legal, e frequentemente de penas elevadas.

Situações cotidianas como baixar um filme da internet, assinar a lista de chamada da faculdade pela colega que se ausentou da aula ou dividir uma cerveja com o amigo de 17 anos, por exemplo, correspondem respectivamente aos crimes de violação de direito autoral (artigo 184 do Código Penal, pena de detenção de 3 meses a 1 ano), falsificação de documento (artigo 298 do Código Penal, pena de 1 a 5 anos de reclusão, se a faculdade for particular, ou de 2 a 6 anos, se a faculdade em questão for pública, aplicando-se então o artigo 297 do CP) e entrega de substância viciante a criança ou adolescente (artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente, pena de detenção de 2 a 4 anos), mas quem as vivencia dificilmente se enxerga como autor de fato típico penal. É claro que se pode alegar que são condutas não violentas, incomparáveis a um estupro, um homicídio ou um latrocínio. Porém, como já observamos acima, não são estes os crimes que superlotam os estabelecimentos penitenciários, além do que tráfico de entorpecentes e furto também não são crimes violentos.

Evidentemente, não estamos a defender que se amplie a intervenção do Direito Penal para esses “crimes nossos de cada dia”, mas sim que se tome consciência de como opera o critério de seleção do sistema de justiça, que reforça o estilo de vida que nos divide nesse nós e os outros, fortalecendo a crença em uma fronteira que, na verdade, é muito menos nítida do que se imagina.

Também é revelador desse estilo de vida – de se enxergar fora do espectro de clientes preferenciais do sistema de justiça criminal – a absoluta falta de constrangimento em se aplaudir atos de violência, tais como se demonstra pela eleição do comandante do Massacre, Coronel Ubiratan, em 2002, candidato registrado sob o nº 111[4].

Com a famosa bandeira do “bandido bom é bandido morto”, virou fenômeno comum a criação de páginas em redes sociais que defendem e apoiam medidas como tortura e pena de morte para “bandido”, criticando-se sempre, em contrapartida, os defensores de direitos humanos. Fotos de pessoas baleadas, mormente em abordagens policiais nas periferias, são as mais visualizadas. Quanto mais sangue, mais curtidas e compartilhamentos. A violência como entretenimento se difunde na mesma proporção em que ganha espaço e popularidade os programas policiais que dominam parte dos canais abertos em horário nobre. Disseminam-se os sentimentos de medo, dissuasão, vingança e, sobretudo, a sensação de que o extermínio ou encarceramento definitivo de inimigos vai diminuir os problemas da violência ou da criminalidade.

Ocorre que o sistema repressivo que é oferecido submete os selecionados a graves violações de direitos humanos, sem condições mínimas de dignidade, porque o Estado privilegia o aprisionamento como “panaceia” ou “válvula de escape” para questões de segurança pública, sem reconhecer que mesmo com construção de novos presídios, continuará havendo superlotação e os problemas dela advindos, o que fortalece as facções criminosas, que, por sua vez, praticam atitudes de reação contra a opressão do Estado e da sociedade civil.[5]

Permanece, assim, a situação cíclica de insegurança e pânico que encontra no Massacre do Carandiru o símbolo de uma política penitenciária injusta, perversa e disfuncional e que coloca em discussão o papel da polícia e seus limites nas agendas de todo e qualquer movimento em prol dos direitos (de todos) humanos, ou seja, do Estado de Direito pleno.

A prisão como forma do aparato repressivo por excelência tem sua longevidade em decorrência de sua aceitação na sociedade. É preciso tomar consciência de que são os miseráveis que estão sendo encarcerados para que os livres se preservem da responsabilidade de fazer frente às disparidades sociais. São necessárias políticas sociais de extirpação das desigualdades e não políticas criminais que acentuem a maximização da pobreza.

A realidade é uma só: são massacrados pelo sistema penal os que são selecionados pelo sistema penal. A ausência de identificação com essa situação afasta a capacidade de indignação individual e coletiva e, assim, pouco se contribuirá para uma sociedade menos militarizada, menos punitiva. Mais igual.

Notas

[1]O uso da violência foi o meio empregado por mais de 300 membros da Tropa de Choque e da Rota para reprimir briga de poucos detentos do Pavilhão 9. Utiliza-se o termo massacre para retratar que a violência foi desproporcional e predominantemente oriunda de uma das partes do conflito.

[2] Disponível aqui

[3] Disponível aqui

[4] O comandante da operação da PM que resultou no massacre foi eleito deputado estadual por SP em 2002 com 56.155 votos. Disponível aqui

[5] Interessante notar que o Massacre do Carandiru motivou a organização e surgimento de uma das maiores facções criminosas do Brasil: o Primeiro Comando da Capital (PCC), criado em 1993, um ano após o episódio.

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