Por Egon Heck, Secretariado Nacional – Cimi
Uma tarde de calor em Brasília. No Ministério da Justiça mais uma sessão ordinária da Comissão da Anistia.
Apreensão e muita expectativa. Um momento histórico nesse dia 19 de setembro. Pela primeira vez serão julgados processos de anistia solicitados por um povo indígena.
Depois de quatro horas, o presidente Paulo Abraão declara oficialmente: “A partir de hoje a história do Brasil tem que ser contada diferente”. O Estado brasileiro reconhece sua ação de exceção-repressão contra os povos indígenas e pede oficialmente perdão por essas ações e concede reparação – 130 salários mínimos a cada um.
Dos 16 pedidos analisados, 14 foram reconhecidos pela Comissão.
Foram reconhecidos os crimes de exceção praticados pelos militares contra uma aldeia de indígenas de pouco contato, que praticamente não falavam português. Isso por três anos, de 1972 a 1975; período do combate e extermínio da Guerrilha do Araguaia.
Composta de apenas 40 adultos, a aldeia foi aterrorizada com a instalação de uma base militar bem ao lado. Os homens foram praticamente todos obrigados a participar diretamente em serviços forçados, especialmente carregar munição, alimentos e pessoas assassinadas. Uma situação de horror que traumatizou a população da aldeia.
Em seus depoimentos, os índios presentes relataram as crueldades, atrocidades e humilhações a que foram submetidos. “Os militares nos ameaçavam e intimidavam dizendo que se não participássemos das ações perderíamos a terra. Além disso nós colocavam na frente das operações para que morrêssemos primeiro”, disseram.
Relatar várias situações de guerra envolvendo a aldeia foi muito difícil. Estavam visivelmente nervosos, chegando às lágrimas. Dois dos que haviam peticionado já morreram e outros não conseguem mais sair da aldeia.
Já era noite. Uma luz brilhou no fim do túnel. Uma vitória da resistência e luta dos povos originários, mas de maneira especial pela coragem do povo Aikewara. Aguentaram silenciosamente esse enorme sofrimento e trauma, com medo de repressão dos militares.
Os índios anistiados habitam a aldeia Sororró, na Terra Indígena Aikewara, localizada entre os municípios de Marabá (PA),São Geraldo do Araguaia (PA), São Domingos do Araguaia (PA) e Brejo Grande do Araguaia (PA).
Pedido de perdão e reparação
Ao reconhecer a violação dos direitos dos índios, o presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abraão, pediu perdão pela ação do Estado brasileiro. “O conjunto de uma comunidade indígena também foi vítima da ditadura militar e que essa repressão, que aconteceu ao povo que vivia ao redor da região da Guerrilha do Araguaia, atingiu não apenas os camponeses, os guerrilheiros, mas também as comunidades indígenas que lá estavam”, disse Abrão. “O que era apenas uma presunção, agora é certeza e a história tem que ser recontada para dizer que indígenas também foram atingidos pela repressão”, disse Abrão à Agência Brasil.
Um caso emblemático
Conforme a coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Sônia Guajajara, trata-se de “um caso emblemático, pois através dele abre-se uma nova perspectiva para que o Estado Brasileiro peça perdão aos povos indígenas de todo o país por todas as barbaridades que ocorreram”.
Sônia continua: “Sempre se fala em dívida histórica com os povos indígenas, como algo de um passado distante. Poucos percebem que o genocídio dos povos indígenas segue se repetindo e que a construção de uma nação democrática depende de uma Justiça de Transição ampla para os povos originários dessa terra, alvos da opressão primeira, que deu origem a essa nação”
Reparação individual e coletiva
O Estado brasileiro pede perdão aos indígenas Aikewara e concede reparação com relação às atrocidades cometidas contra esse povo pelos militares, no contexto da repressão à guerrilha do Araguaia. Uma decisão ímpar.
A questão da reparação coletiva foi lembrada pelos índios, pela relatora Sueli Belatto e pelas testemunhas Sônia Guajajara,Marcelo Zelik e Iara Ferraz. Essa reparação seria o imediato reconhecimento e regularização de parte de seu território, que está sendo ocupado por fazendeiros.
A presidenta da Funai, Maria Augusta Boulitreau Assirati, prometeu que, até o início de outubro, vai entregar ao ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, o processo acrescentando 11 mil hectares no território dos Aikewara.