Oeste do Paraná: uma onda ininterrupta de violência contra os povos indígenas

terra roxa“Lá, na mata junto ao rio é nossa casa, nossa morada, o branco nem sabe que lá é Tatá Rendy (luz do fogo), que é sagrado… Lá é nossa tekoha (lugar onde se é), nossa antiga aldeia, que ainda é nossa, muito antes até da FUNAI estudar, muito antes da gente existir, e hoje vivemos assim, vivemos assim.”

Cimi Regional Sul

As palavras proferidas pelo rezador Santiago Morales de mais de 90 anos, no cair da tarde da última sexta-feira, dia 29 de agosto, refere-se ao despejo sofrido por um grupo Guarani que ocupava uma pequena porção de terra dentro de uma “fazenda” no município de Terra Roxa, ocorrido no dia 18 de agosto no estado do Paraná. O fato é apenas o último episódio de uma história de violência constante sofrida pelo povo Guarani no oeste paranaense.

Atualmente, vivendo em 13 terras indígenas, nenhuma regularizada, localizadas entre os municípios de Guaíra e Terra Roxa, com uma população de aproximadamente 1.800 indígenas, os guarani encontram-se em uma situação tão aguda de vulnerabilidade que no ano passado o procurador da República Henrique Oliveira ingressou com 45 processos administrativos junto às diversas instâncias do Poder Público em apenas dois meses de trabalho. As peças emitidas pelo procurador guardam intensos relatos dos níveis de degradação e da total falta de dignidade humana vivida pelo povo Guarani há muitas décadas.

Cansados de viver nesta situação, que tem se intensificado com a paralisação dos procedimentos demarcatórios, um pequeno grupo de aproximadamente 30 indígenas guarani decidiu, na manhã do dia 18 de agosto, ocupar uma faixa de mato ao lado de um córrego, em uma pequena extensão da fazenda São Paulo, localizada na (não por acaso) Vila Guarani, na divisa entre os municípios de Guaíra e Terra Roxa. Esta área trata-se de uma terra que se encontra em estudo pela FUNAI e que para o povo Guarani se constitui como um antigo território sagrado chamado pelos seus anciões de Tatá Rendy (luz do fogo). Como afirma Santiago Morales: “É uma terra onde podemos ter acesso ao mato, aos recursos que precisamos. Uma terra em que podemos viver como Guarani”.

Mesmo tratando-se de um número tão reduzido de indígenas, e mesmo os Guarani não representando nenhum perigo considerável aos moradores do local, poucas horas depois, na tarde do mesmo dia, um grupo fortemente armado formado por mais de 300 fazendeiros, produtores rurais, comerciantes e políticos reuniu-se no local e passou a ameaçar os indígenas prometendo, segundo as palavras dos guarani, matar todo índio que ousasse resistir ao despejo que o próprio grupo trataria de aplicar. Os indígenas tiveram de deixar o local na mesma noite sob uma espécie de “escolta” da Polícia Federal. Enquanto as demarcações de terra seguem paralisadas, este é o segundo despejo sofrido pelo povo Guarani em menos de seis meses.

A liderança guarani Ilson Soares referindo-se ao caso lamenta: “Eles (os mais velhos) se preocupam com o futuro, com as condições que vivemos e então falam belas palavras, de incentivo, de esperança para nosso povo. Nosso povo que não aguenta mais, então passa a sonhar com as palavras e procura melhorar sua condição de vida para poder viver sua cultura e seu modo de ser.  É uma pena ver que tão belas palavras possam ter um resultado tão ruim, que gere tamanha violência”.

A “tamanha violência” lamentada por Ilson ganha nesta região fronteiriça com o Mato Grosso do Sul dimensões inacreditáveis e revela os bastidores de uma rápida e ágil articulação entre os setores do agronegócio e do poder público com a finalidade de promover uma sombria definição de “justiça direta” contra os povos indígenas. Esta articulação, registrada pelos indígenas na desocupação do grupo Guarani no último dia 18 de agosto, constitui-se na verdade como a tônica de uma onda ininterrupta de violência que vem assolando os povos indígenas, ano após ano, no oeste paranaense.

Racismo institucional, utilização da máquina pública, formação de quadrilha, ameaças e assassinatos marcam tal “onda” de ataques, que tem sua origem junto aos oceanos de monocultura do estado do Paraná, do Mato Grosso do Sul e das demais zonas de expansão das fronteiras agrícolas brasileiras. Enquanto na esfera Federal o governo pactuou com o agronegócio paralisação das demarcações, regionalmente verdadeiras máfias e milícias, aproveitando-se da ineficiência das leis e da Justiça, praticam todo tipo de violência para garantir de maneira prática o desmonte dos territórios tradicionais e originários.

assembleiaguaranioesteparanaQuadrilha institucional e um pequeno histórico da violência recente contra os povos indígenas em Guaíra e Terra Rocha

No ano de 2010, quando as bancadas ruralista e evangélica ainda não havia conseguido congelar os procedimentos demarcatórios das terras indígenas via caminhos institucionais, no oeste do Paraná, os fazendeiros da região já aplicavam “estratégias” para que sua violência direta tivesse efeito similar. Um grupo de fazendeiros literalmente fechou as portas de uma aldeia indígena, alegando que estavam em território de uma fazenda, confinando o povo Guarani e os mantendo cativos através de ameaças e vigília integral. Os fazendeiros impediam que os mesmos tivessem inclusive acesso a alimentação. O ato criminoso foi desfeito apenas com intervenção direta do Ministério Público Federal de Umuarama e da Polícia Federal. Os estudos preliminares das terras indígenas haviam sido garantidos apenas um ano antes também por determinação judicial.

No mesmo ano, a aldeia Y’Hovy (Rio Azul), localizada em Guaíra, foi atacada por jagunços armados e liderados por um arrendatário chamado Vantuir Morra. Casas foram destruídas e queimadas e os agressores só recuaram devido a organização dos indígenas, que resistiram aos ataques colocando suas próprias vidas em risco.  Tiros sobre acampamentos indígenas tornaram-se eventos recorrentes.

Já em 2011, com o aumento dos atentados, as comunidades indígenas da região denunciaram a contratação de trabalhadores estrangeiros que prestavam uma “dupla jornada” para seus patrões. Em determinados períodos do dia trabalhavam na colheita, em outros trabalhavam como jagunços armados para manter afastados os povos indígenas e avançar sobre seus territórios. A denúncia chegou a gerar comoção pública devido ao índice de desemprego dos citadinos na região e uma ação de investigação da Polícia Federal acabou por afugentar os jagunços.

O grau de violência e atentados contra os direitos humanos seguiu forte e ativo no ano seguinte. Lideranças das mais diversas aldeias da região passaram a reivindicar os direitos à demarcação dos territórios tradicionais e das condições básicas garantidas aos povos originários pela Constituição Federal e foram sistematicamente ameaçados. Atentados contra a vida dos indígenas tornaram-se eventos cotidianos e o terror tomou conta das comunidades que se sentiram cada vez mais confinadas. Sair dos limites das aldeias tornou-se um risco de vida. No fim de 2012 uma senhora indígena foi atropelada em frente ao terminal rodoviário de Guaíra por um carro à mais de 100 km por hora. Após o atropelamento, o motorista fugiu do local. Mesmo com uma sucessão de eventos como este, os jornais continuavam noticiando os fatos como se estes fossem casos isolados.

O quadro veio a piorar ainda mais no ano de 2013.Com a paralisação das demarcações de terras indígenas adotada pelo Governo Federal, em esfera local, organizações anti-indígena se reforçaram e passaram a ampliar suas investidas contra os povos originários. No caso de Guaíra e Terra Roxa os ataques aos povos indígenas, que já não tinham nada de espontâneos, assumiram o caráter de uma quadrilha institucional. A forte articulação entre fazendeiros e o poder público da região passou a ficar evidente com a criação da Organização Nacional de Garantia ao Direito de Propriedade (Ongdip), da qual faz parte até hoje, nada mais nada menos que o prefeito de Guaíra, o petista Fabian Vendrusculo.

Criada em março de 2013, a organização nasce com o objetivo de se postar de forma combativa contra as demarcações de terras indígenas, “alertar” a população local sobre o perigo das invasões de terra por parte dos indígenas e inclusive encomendar laudos de estudo a respeito das demarcações de fontes que eles considerem seguras.

A Ongdip e Sindicatos Rurais passaram então a encabeçar uma forte campanha difamatória com teor de verdadeira incitação pública onde os moradores de Guaíra e Terra Roxa foram incentivados abertamente a tomar partido na luta contra os povos indígenas. Faixas foram estendidas pelas praças e principais ruas da cidade com dizeres como “invasão indígena não combina com ordem e progresso” e “o Brasil que produz merece respeito”. Um panfleto de caráter profundamente racista intitulado “A Verdade”, financiado a partir de recursos privados dos vereadores da cidade foi amplamente distribuído enquanto adesivos portando a frase “Minha Terra, Minha vida: PR e MS contra a demarcação das terras indígenas” passaram a estampar os vidros da grande maioria dos veículos que transitavam pelas cidades. O ponto mais forte da campanha culminou no dia 14 de março quando centenas de pessoas da cidade de Guairá e Terra Roxa ocuparam a ponte Ayrton Senna, limite entre os estados do Paraná e Mato Grosso do Sul, para gritar contra as demarcações.

Segundo informações provindas do Ministério Publico Federal de Guaíra, a partir de uma investigação descobriu-se que o próprio prefeito Fabian Vedrusculo havia decretado feriado na cidade para realização do protesto e que todos os empregados dos mais diversos estabelecimentos comerciais foram convocados pelos patrões a participar do “protesto da ponte” como se fosse uma atividade normal de trabalho.

O pai de Fabian é sabidamente proprietário de terras que incidem diretamente sobre a área indígena de Tekoha Mirin em Guaíra, e para além da família Vedrusculo, outros fazendeiros temidos pelos Guarani engrossam as fileiras desta organização contra as demarcações.  Segundo os indígenas o fazendeiro Roberto Weber é conhecido pelos indígenas de longa data. Roberto é sobre tudo presidente da Ongdip e já teria promovido ações contra lideranças Guarani. A Fazenda São Paulo, da qual o grupo de 30 Guarani foi expulso no último dia 18 de agosto por mais de 300 pessoas armadas é , segundo informações dos indígenas, pertencente ao pai de Roberto, Sr. Rosalino Weber.

Os indígenas denunciam ainda que o produtor rural Semião Neves, que tem se colocado como uma espécie de porta voz daComissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural na região, por diversas vezes agiu contra a aldeia indígena conhecida como Tekoha Guarani. Segundo Ilson Soares, liderança Guarani, Semião contaminou as águas utilizadas pelos Guarani com veneno e destruiu as plantações que ficam dentro do terreno da aldeia. Ilson recorda que em um dos ataques, destas investidas de Semião, foi flagrado por integrantes do Centro de Trabalho indigenista (CTI), que realizavam uma entrega de mudas para que os indígenas pudessem plantar. “Quem estiver na Tekoha vai ver, eles fazem tudo abertamente”, relata Ilson.

Em novembro do ano passado a onda difamatória e as investidas dos fazendeiros culminaram em dois acontecimentos drásticos para o povo Guarani. Uma jovem indígena de apenas 19 anos, que prefere se identificar apenas como Amélia, foi sequestrada a caminho da sede da FUNAI, onde trabalha. Ela conta que foi molestada durante mais de três horas por três homens e que depois a largaram no meio da rua. Antes de ser solta, Amélia teve de ouvir as ameaças direcionadas a seu irmão, liderança indígena da aldeia Tekoha Marangatu, em Guaíra, e servidores da FUNAI.

No mesmo mês, muitos indígenas reuniram-se na aldeia Tekoha Porã, também em Guaíra, para um torneio de futebol. Durante os jogos, pessoas apareceram e passaram a exibir armas e ameaçando que naquela noite um indígena morreria. Na referida noite a promessa foi cumprida. O indígena Bernardino Ortega foi atingido por uma série de disparos provindos de um veículo. Não resistiu e morreu. Outros indígenas ficaram feridos.

tekohaguaraniAssédio e ameaças não escutadas, vidas despedaçadas e políticas de compensação que não compensam 

A liderança indígena Ilson Soares alerta que as ameaças contra os guarani jamais pararam. Elas acontecem todos os dias, o problema é que a polícia não tem dado ouvido às queixas. “Homens armados têm se aproximado de crianças agora, assediam elas e através delas mandam recados mortais para nós, lideranças. Quando a gente denuncia a polícia diz que não devíamos ouvir histórias de crianças, será que vai ser preciso quantos cadáveres mais para eles entenderem que a coisa aqui é séria, que estamos sendo massacrados”. Ilson segue: “Além disso, quase todo o dia que saímos enfrentamos algum perigo real. Motoristas jogam o carro em cima da gente, pessoas nos ameaçam na rua, em plena luz do dia, mas não tem monitoramento, estamos por nossa conta”.

Para Ilson, o resultado desta violência é sentida pelos indígenas em todos os âmbitos da vida. “As crianças são discriminadas nas escolas enquanto os adultos são despedidos dos frigoríficos. Não podemos ter acesso pleno à cidade e cada nova ação dos ruralistas ou do governo é uma cidade inteira que se volta contra nós”. O desabafo da liderança Guarani é igual em todos os aspectos ao desabafo das famílias Kaingang da aldeia Kandóia, localizada no município de Faxinalzinho no Rio Grande do Sul, há mais de 700 km de Guaíra. Tanto no Estado Gaúcho como no Paraná ações governamentais e de forças locais acabaram por aprisionar os indígenas em suas pequenas ocupações de terra, criando verdadeiros aglomerados anti-indígenas nas cidades locais.

Outra similaridade entre o Rio Grande do Sul e o Paraná, no que se refere aos povos indígenas, são as ditas propostas de compensação oferecidas pelos Governos para que os indígenas abram mão de sua luta pelos territórios tradicionais. No Paraná, Hamilton Serighelli, que é secretário Especial de Assuntos Fundiários do governo estadual, tentou permutar com os guarani as áreas que estes reivindicavam por outra terra localizada junto ao parque da ilha Grande. Na época, o procurador de Umuarama Robson Martins se pronunciou de forma contrária a permuta, alertando sobre as condições de defasagem do terreno e outros processos administrativos relacionados à permanência de outros grupos no local, como por exemplo, as comunidades ribeirinhas. Os indígenas rechaçaram de forma veemente a proposta.

Para os guarani, o Ministério Público Federal (MPF), tanto de Umuarama quanto em Guaíra, tem sido um grande protetor. “Eles (procuradores) também estão nomeio do tiroteio dos fazendeiros, sem poder fazer muito, mas tem garantido pelo menos questões básicas para nós, como saneamento e alimentação, isso é muito importante” relata Ilson. Segundo o Cacique da Tekoa Y’hovy os estudos de demarcação só seguem por determinação do MPF e de fato, apesar de em 2013 o governo federal ter paralisando as análises demarcatórias em todo país, a Funai só instaurou um novo Grupo de Trabalho (GT) porque foi obrigada por uma decisão judicial, provocada pelo órgão.

Rio dos indios_protestoProtesto Guarani vem rompendo o silêncio.

Do Guarani mais novo ao mais velho é unanime a posição de que não se trata de um genocídio sofrido em silencio. “Os fazendeiros podem fazê-lo de maneira velada, mas nós não estamos mais quietos. Nós temos ido à praça, pintado o rosto, feito protestos junto à universidade, denunciado. Por muitas vezes este ano e no ano passado saímos às ruas, gravamos tudo, encaminhamos aos órgãos responsáveis. Todos sabem o que está acontecendo e nós vamos continuar denunciando” diz o jovem Marcos Benites de apenas 15 anos.

Em cada uma das 13 aldeias localizadas entre Guaíra e Terra Roxa, existe uma força originária pulsando forte, como uma chama que se recusa a apagar. Quando mais pressão é exercida contra estas comunidades, mais esta força parece pulsar. Nas casas de reza os pequenos aprendem os passos dos mais velhos e com eles sonham em recuperar aquilo que sempre foi do povo Guarani. Aprendem que para além da lógica do transgênico e da monocultura a terra é sinônimo de vida. Sabem melhor do que ninguém que a premissa inversa também é verdadeira, sem-terra, sem vida digna. E como um tiro que sai pela culatra, o efeito pretendido pelos fazendeiros reverte sua lógica. Vivendo como comunidades sem-terra, enraízam mais forte o sentimento pelo seu Tekohá. Desta forma as comunidades têm ganhado as ruas e tronado público o genocídio programado que as autoridades e fazendeiros têm executado dia após dia. Na coragem dos que lutam hoje mora a esperança dos que virão amanhã.

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