35 anos da Lei de Anistia: “Não era essa a anistia que queríamos nem a que queremos”, afirma ex-preso político

2014_09_entrevista_lei_anistia_paulo-emanuel-lopes1Marcela Belchior – Adital

O ano era 1979 e o Brasil deixava, pouco a pouco, o regime ditatorial que governava o país desde o Golpe de Estado de 1964. A Lei de Anistia foi promulgada em 28 de agosto daquele ano pelo presidente João Batista Figueiredo, após ampla mobilização social, ainda durante a vigência dos militares no poder. Por meio dela foi concedida anistia a todos os que cometeram crimes políticos ou eleitorais, tiveram seus direitos políticos suspensos, mas também aos servidores da Administração Pública direta e indireta, inclusive aos próprios militares que protagonizaram atos de sequestro, homicídios e tortura, dentre outras violações.

35 anos depois, a Lei ainda é controversa no país. Nos últimos anos, principalmente com o debate que se instalou após a instalação de Comissões da Verdade para apurar casos do período ditatorial, setores intelectuais, dos movimentos sociais e das lutas da classe trabalhadora querem a revisão do conteúdo dessa legislação. Torturadores, seus mandantes e ex-ditadores devem permanecer anistiados ou devem pagar pelos crimes cometidos? Crimes de lesa-humanidade não prescrevem, ou seja, não têm prazo para julgamento. Haveria no Brasil ambiente político para avançar nessa questão?

Para debater esta e outras questões, a Adital entrevistou o professor Valter Pinheiro (foto), integrante do Comitê pela Memória, Verdade e Justiça do Ceará, um dos muitos que se instalaram no Brasil para apurarem e contarem uma história que jamais veio à tona plenamente no país. Pinheiro foi um dos muitos que militaram pela retomada da democracia durante o regime ditatorial, sendo sequestrado por duas vezes pelos militares e torturado na propriedade conhecida como “Casa dos Horrores”, na cidade de Maranguape (Estado do Ceará).

Para ele, é urgente e fundamental a necessidade de revisão e punição dos autores das violações aos direitos básicos da população, entre 1964 e 1985, uutro grande desafio para um Brasil com instituições políticas ainda fechadas para o exercício pleno da transparência e da justiça, apoiado em um projeto, de fato, democrático.

ADITAL – O que a Lei de Anistia representou quando foi aprovada 35 anos atrás?

Valter Pinheiro- Essa Lei de Anistia foi uma imposição fascista dos militares que estavam no poder. A Lei, por ela, os torturadores também foram anistiados, com o que nós discordamos radicalmente. Falo em meu nome e em nome do Comitê pela Memória, Verdade e Justiça do Ceará. A avaliação que fazemos é que não era essa anistia que queríamos nem a que queremos.

ADITAL – Como era a discussão na época em que a lei foi aprovada?

VP – Na época em que foi aprovada, não havia nem discussão. Os militares já trouxeram o projeto e não houve um amplo debate com as diversas forças políticas, organizações e, portanto, foi uma imposição.

ADITAL – O que a Lei de Anistia representa na atual conjuntura brasileira?

VP – Na atual conjuntura, essa Lei continua um desafio, porque nós continuamos lutando pela revisão. Não aceitamos que ela continue e nossa proposta é que haja revisão: anistia para os ex-presos políticos e punição para os torturadores, seus mandantes e cúmplices.

ADITAL – Que tipos de resistências há com relação a essa proposta?

VP – A resistência é feita, principalmente, através dos Comitês pela Memória, Verdade e Justiça. Porque da parte da Comissão Nacional da Anistia [vinculada ao Ministério da Justiça], não há, assim, grandes interesses. Inclusive, a Comissão da Anistia é apenas para memória e verdade; nem sequer sinaliza para a justiça.

ADITAL – Há uma argumentação jurídica em torno da possibilidade ou não de se fazer essa revisão. Como o senhor a avalia?

VP – Bom, essa argumentação jurídica pela revisão se baseia — inclusive em todos os fóruns internacionais de direitos humanos — no fato de que se considera a tortura um crime de lesa-humanidade. Esses crimes de tortura não prescreveram nem vão prescrever. Na Argentina [governada por regime ditatorial militar em vários golpes ao longo do século XX, os dois últimos de 1966-1973 e de 1976-1983], os criminosos que estavam no poder (torturadores, mandantes, ex-ditadores) foram punidos, foram presos. Houve até um que já morreu na prisão. Então, nós queremos que o mesmo seja aplicado aqui.

ADITAL – Para isso existem muito mais barreiras políticas do que jurídicas?

VP – Sim. E, para que essa revisão seja aceita, é necessário que haja uma ampla mobilização dos setores organizados da classe trabalhadora da sociedade. Porque se depender apenas do Supremo Tribunal [Federal, STF, mais alta Corte do Brasil] que, na minha opinião, é um antro de fascistas, e se depender dos governos que estão aí — inclusive do governo do PT [Partido dos Trabalhadores], em âmbito nacional —, essa revisão não será feita. Então, será necessária uma ampla mobilização, um amplo debate nacional no sentido de que haja uma mudança nessa lei, uma revisão. E que se exija que os criminosos, que cometeram crimes contra a humanidade, no caso os torturadores e o que resta de seus mandantes, que sejam punidos.

ADITAL – A ditadura civil e militar foi suplantada há 30 anos. Na sua avaliação, a política democrática no Brasil está consolidada?

VP – Há muito que se fazer para que haja democracia neste país, inclusive no que se refere à perseguição aos trabalhadores — aos trabalhadores conscientes, que estão na luta pela construção de uma nova sociedade. As torturas continuam. As torturas estão aí nos presídios, mesmo contra presos comuns. Então, na minha opinião, nada mudou. É preciso que a luta continue. As mesmas reivindicações que fazíamos na época da ditadura, exceto a retirada dos militares do poder – entre aspas, porque os militares continuam no poder, continuam dando as ordens. Então, é preciso que haja muita luta ainda. E isso só se faz com um debate em toda a sociedade, principalmente nos setores organizados da classe trabalhadora.

ADITAL – Neste contexto eleitoral de 2014 no Brasil, como o senhor avalia a abertura para esse tipo de debate por parte dos candidatos à Presidência da República?

VP – No que se refere aos candidatos [sendo os principais Dilma Rousseff, Marina Silva e Aécio Neves], no que refere a essa eleição, todas as opiniões dadas pelos candidatos, para mim, não passam de uma farsa para conseguir votos. Não há nenhum interesse desses partidos em avançar na luta pela construção da verdadeira democracia porque construir uma democracia implica uma mudança social, que no capitalismo é impossível.

ADITAL – Como foi sua experiência política no período ditatorial?

VP – Eu era estudante. Comecei minha luta ainda quando estudante do ensino básico. Na época era ginasial, no meu caso científico, no [Colégio Estadual] Liceu [do Ceará]. E prossegui com essa luta na faculdade. Eu fazia o curso de Letras. Durante esse período, eu tive duas prisões. Na realidade, dois sequestros, porque, na época em que os militares estavam no poder, os fascistas — nazi-fascistas, para ser bem específico —, não prendiam; sequestravam. Porque não havia mandado judicial, eles chegavam e invadiam as casas. E eu tive duas prisões nesse contexto.

ADITAL – Em quais anos?

VP – Uma em 1971, pelo DOPS [Departamento de Ordem Política e Social, órgão do governo brasileiro utilizado pela ditadura militar para controlar e reprimir movimentos políticos e sociais contrários ao regime no poder], e fui levado para o quartel do 23 BC [23° Batalhão de Caçadores do Exército, situado em Fortaleza], onde passei 30 dias detido, na maior parte do tempo incomunicável. A segunda prisão foi em 1973, pela Polícia Federal, quando passei também 30 dias incomunicável. Da sede da Polícia Federal [em Fortaleza], onde hoje funciona a Secultfor [Secretaria de Cultura de Fortaleza], eu fui levado para [o município de] Maranguape. Na época, a gente nem sabia para onde estava sendo levado. Era levado para uma casa que ficava numa fazenda, para sessões de tortura. Essa casa, hoje, é conhecida como “Casa dos Horrores”; fica na área rural de Maranguape, situada numa fazenda chamada Trapiá. Lá, a gente era torturado. Foram muitos os que passaram por lá. Inclusive, agora, no dia 1° de abril [quando se completaram 50 anos do Golpe de Estado no Brasil de 1964], nós, do Comitê pela Memória Verdade e Justiça, realizamos um ato de repúdio em frente a essa casa.

ADITAL – É uma propriedade privada?

VP – É privada, mas seus primeiros proprietários eram simpatizantes do Golpe Militar. Inclusive, cederam parte do terreno da fazenda para uma unidade do Exército.

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