População Negra e a Luta Diária Pelo Direito à Saúde

No Brasil, é muito antiga a luta da população negra contra o racismo, o preconceito, a discriminação racial e as múltiplas formas de opressões, buscando melhores condições de vida, moradia, educação, trabalho e saúde e também visando à construção de uma sociedade justa e igualitária. De fato, desde o tráfico transatlântico e a escravidão, nota-se a necessidade constante em estabelecer no ambiente adverso marcado pela violência e injustiça, uma luta pela afirmação de seus direitos humanos e condições dignas de vida e de saúde. Tais lutas, além de contribuir para a queda do regime escravocrata, influenciaram as diferentes respostas que o Estado Brasileiro foi e ainda é levado a dar em relação à qualidade de vida e saúde da população.

A continuidade destas lutas certamente contribuiu para o reconhecimento constitucional da saúde como um direito universal para todo e qualquer cidadão e como dever do Estado. Assim, possibilitou a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) fruto das conquistas e lutas de diversos movimentos que se consolidavam nos anos 70 e 80, como os populares, o de trabalhadores em saúde, usuários, intelectuais, sindicalistas e movimentos sociais, destacando-se o da Reforma Sanitária e da Luta Antimanicomial.

Mas afinal de contas, que saúde é essa que estamos falando? Antes de ser apenas a ausência de uma ou mais doenças, a saúde pode ser entendida como um processo em que as condições individuais e coletivas de saúde-doença são influenciadas e determinadas por fatores econômicos, políticos, ambientais e socioculturais. Desta maneira, as condições de saúde são diretamente influenciadas e afetadas pelas condições de nascimento; história de vida individual e familiar; desigualdade de raça, etnia, idade e sexo; condições de vida e moradia; condições e tipo de trabalho, emprego e renda; acesso à informação, a bens e serviços essenciais disponíveis.

No Brasil negras e negros africanos e seus descendentes foram submetidos à condição escrava por mais de três séculos seguidos, condição essa legalizada na maior parte desse período e legitimada socialmente. Em 1889, um ano após a abolição formal da escravatura foi proclamada a República no Brasil, contudo esse novo sistema político não garantiu direitos, ganhos materiais ou simbólicos para a população negra, investimentos ou qualquer tipo de ação do Estado no sentido de amparar esse enorme contingente populacional, que de um dia para o outro foi despejado das senzalas para as ruas.

Pelo contrário, negros e negras foram marginalizados, “seja politicamente em decorrência das limitações da República no que se refere ao sufrágio e às outras formas de participação política, seja social e psicologicamente, em face das doutrinas do racismo científico e da “teoria do branqueamento”; seja ainda economicamente, devido às preferências em termos de emprego em favor dos imigrantes europeus.” (Andrews, 1991)

Ainda hoje podemos perceber o quanto esta população ainda permanece violentada em seus direitos e vitimada pelas injustiças sociais decorrentes desse período. Os resultados das mentalidades senhoriais e escravistas em nossa sociedade ainda estão presentes no imaginário coletivo social, continuam latentes, opressores e adquiriram novas formas e nuances, inclusive no que se refere ao direito à Saúde preconizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) no que tange o acesso da população negra aos serviços de saúde, à assistência e ao tratamento adequado às suas necessidades de saúde.

Em 2004, dados do Atlas Racial Brasileiro, divulgados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) a partir da análise das condições socioeconômicas de negros e brancos no Brasil, concluíram que a população negra (composta por pretos e pardos, segundo classificação adotada pelo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE) está em situação desfavorável em todos os indicadores. A pesquisa mostrou ainda que 65% dos pobres e 70% dos indigentes brasileiros são negros e que apesar de uma queda nos números de mortalidade infantil, as taxas entre os filhos de mulheres negras são 66% acima das registradas entre os de mulheres brancas.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Censo IBGE 2010), enquanto a população branca vive, em média, até os 71 anos, a negra morre aos 66 anos. Pesquisas recentes do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) divulgadas no segundo semestre de 2013 apontaram que, a probabilidade do negro ser vítima de homicídio é de oito pontos percentuais maior quando se compara a indivíduos não negros com características socioeconômicas e escolaridade semelhantes. A pesquisa revelou ainda, que negras e negros ganham menos, trabalham mais e em piores ocupações. Incluem-se mais cedo no mercado de trabalho e saem mais tarde, as crianças negras são as maiores vítimas do trabalho infantil.

O Ipea concluiu também que as mulheres negras e jovens foram as principais vítimas de homicídios decorrentes da violência doméstica e sexual: mais de 54% dos óbitos foram de mulheres de 20 a 39 anos, sendo 61% de mulheres negras, que foram as principais vítimas em todas as regiões, exceto na região Sul. No Nordeste o percentual de mulheres negras mortas chega a 87% e no Norte, a 83%.

Essa desigualdade social repercute diretamente nos indicadores de saúde da população negra, explicitada pela grande diferença entre brancos e negros no acesso aos cuidados de saúde, o que também contribui para tornar a população negra vulnerável a uma série de agravos e doenças, quando comparada com a população branca. A diferença entre os indicadores reflete em grande parte as dificuldades de acesso aos serviços de saúde, o diagnóstico tardio, a baixa qualidade da atenção oferecida, tratamentos necessários mas inexistentes, inadequados e/ou ineficientes para a população negra.

Negros e negras morrem mais em decorrência das doenças cardiovasculares, causas externas, doenças degenerativas e neoplasias. Nota-se uma incidência precoce, o agravamento precoce e à desassistência. As mortes precoces em decorrência das doenças cardiovasculares, de pessoas que não foram adequadamente tratadas, poderiam ser resolvidas com o que o sistema já possui. Por exemplo, sabe-se que a hipertensão arterial tem maior incidência na população negra e mesmo assim, não há estratégia específica voltada a esse fato. Embora essa já seja uma informação científica comprovada, o sistema de saúde não desenvolve ação para acesso ao diagnóstico precoce e a um tratamento com qualidade.

Esse é um exemplo clássico do que chamamos de Racismo Institucional, definido pelo Ministério da Saúde como “o fracasso coletivo de uma organização para prover um serviço apropriado e profissional para as pessoas por causa de sua cor, cultura ou origem étnica, podendo ser identificado em processos, atitudes e comportamentos que totalizam em discriminação por preconceito voluntário e involuntário, ignorância, negligencia e estereótipo racista, que causa desvantagens a pessoas de minoria étnica.” (MS, 2007)

Assim, o racismo utilizado como instrumento de dominação e aparato histórico, político e ideológico secularmente praticado contra a população negra afeta a garantia de acesso aos serviços públicos de saúde, é fator estruturante na desumanização da atenção prestada a este contingente populacional e precisa ser combatido veemente, pois é possível identificar claramente por meio do processo histórico e social ao qual está submetida a população negra que as suas condições de inserção socioeconômicas (como trabalho e ocupação, educação, renda média familiar, lugar de residência, condições do domicílio, acesso a bens e serviços diversos) determinam os piores indicadores de saúde e é claro as suas condições de (sobre)viver e de morrer.

Reconhecer as particularidades de saúde da população negra e seus agravos é extremamente importante para o estabelecimento de políticas públicas equânimes que visem diminuir as desigualdades em saúde a qual está submetida, assim como é necessário realizar o ferrenho combate ao Racismo Institucional, uma vez que o racismo incorporado, perpetuado e praticado, mesmo que de forma velada, não percebida e/ou assumida em meio às ações de saúde influenciam diretamente na condição de saúde-doença dessa população.

Como resultante dessa luta permanente liderada por diversos militantes do Movimento Negro, a construção da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, oficializada em 2007, reflete a busca pela promoção à saúde dessa população, de maneira qualificada e adequada às suas necessidades e particularidades de saúde, que são explicitadas por estudos, pesquisas e dados estatísticos. Embora seja considerada um grande avanço e ganho para toda população, ainda encontra diversos entraves para a sua efetivação na prática.

O combate ao racismo deve ser permanente e militante, pois o mesmo serve como ferramenta de manutenção da concentração de renda e do poder. Nesse embate, é importante a agregação de novos aliados, pois o combate ao racismo, às formas de opressão e discriminação é responsabilidade de todos aqueles que acreditam na construção de um mundo onde a origem étnica, religiosa ou social não seja usada para a negação de direitos fundamentais a qualquer ser humano como é a educação, a saúde ou o trabalho.

A construção de um outro mundo possível, um mundo solidário, fraterno e justo, livre de injustiças, preconceitos e opressões de quaisquer tipos é mais que urgente.

Referências Bibliográficas

Andrews, GR. O protesto político negro em São Paulo (1888-1988), Estudos Afro- Asiáticos, n.21, Rio de Janeiro, 1991, p. 32.
Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional Integral de Saúde da População Negra. Brasília, DF, 2007.
Brasil. Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). Racismo como Determinante Social de Saúde. Brasília, DF, 2011.
Geledés – Instituto da Mulher Negra. Guia de Enfrentamento ao Racismo Institucional.
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo Demográfico 2010.
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Boletim de Análise Político-Institucional 4. Rio de Janeiro, 2013.
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Dossiê Mulheres Negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil. Organizadoras: Mariana Mazzini Marcondes [et al.] Brasília, 2013.
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Atlas Racial Brasileiro, Brasil, 2004.

Fonte: Blogueiras Negras

*Enfermeira em um serviço público de saúde em SP, é mestranda da Escola de Enfermagem da USP e integrante do coletivo de ativistas anti-racistas Quilombação. Acredita e luta para a construção de um mundo justo, livre de racismo, preconceito, discriminação e opressões de todos tipos.

 

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